Levante no Chile é resposta contra neoliberalismo, avalia Renato Martins

Professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) examina a falência do modelo neoliberal do país vizinho, causa maior das manifestações em curso

Agencia UNO

Quando Jair Bolsonaro escolheu o Chile para a sua primeira visita como presidente num aliado da América do Sul, em março, ficou clara a sua intenção de enviar um recado aos brasileiros: as políticas neoliberais daquele país seriam o modelo a ser seguido pela sua (já amplamente criticada) gestão.

Agora, em meio à crise do modelo político-econômico que tanto elogiara e com milhares de chilenos às ruas contra os retrocessos da gestão de Sebastián Piñera, o mandatário da República brasileira repete o mesmo vexame de sete meses atrás ao sugerir que o levante popular que incendeia Santiago no momento é uma “articulação da esquerda” contra os “milagres” promovidos pelo ditador Augusto Pinochet – que comandou o país do golpe de 1973 a 1990, quando enfim o país voltou a sentir o gosto da democracia.

Para além do desrespeito à história chilena, que teve um dos regimes militares mais violentos da América do Sul justamente sob o comando de Pinochet, Bolsonaro reproduz um discurso que nem o mais fervoroso devoto da cartilha neoliberal chilena seria capaz de verbalizar.

“Piñera, quando foi eleito pela primeira vez em 2010 e depois nas últimas eleições, procurou se afastar da imagem do Pinochet (…) A política econômica que ele desenvolve é a política que predominou no Chile durante a ditadura militar, com todas as suas terríveis consequências sociais”, explica Renato Martins, professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana e um estudioso inveterado do país que já produziu líderes populares como Salvador Allende e poetas como Pablo Neruda.

Renato Martins, professor da Unila

Nesta entrevista, Martins explica porque refuta a tese do Chile como modelo a ser seguido e descarta qualquer semelhança entre as manifestações do país com as do Brasil em 2013 – embora ambas tenham pego de surpresa até o mais dedicado analista político.

“(O que acontece hoje) é um descrédito com relação ao sistema político que não fez as reformas estruturais exigidas pela sociedade e um repúdio a este modelo totalmente individualista, narcisista e egoísta que abandona todo mundo à sua própria conta e está na origem de uma desigualdade em razão da concentração de riqueza que este modelo produz”, define.

Agência PT: Primeiro, eu gostaria que fizesse um balanço histórico do início do neoliberalismo no Chile e suas consequências no país nos dias atuais.

 

Renato Martins: O primeiro aspecto que vale a pena abordar é de natureza política. Muitos analistas tendem a avaliar a situação chilena a partir do modelo econômico. Tanto esquerda quanto direita partem dessa ideia já inclusive meio gasta do Chile como um laboratório do neoliberalismo.

É verdade que historicamente o país foi o primeiro experimento internacional das políticas neoliberais, antes mesmo da Inglaterra de Margaret Thatcher e dos Estados Unidos de Ronald Reagan nos anos 1980.

Lá (Chile) o neoliberalismo se implantou sob uma das mais cruéis ditaduras do Cone Sul durante a Guerra Fria. Agora, o modelo econômico não explica tudo. Ele é importante de ser compreendido, mas nós devemos nos perguntar sobre as causas políticas e institucionais da atual crise.

E eu acho que por aí tem algumas chaves interpretativas do que está acontecendo. Eu diria que o levante popular que nós vivemos nos dias de hoje é o reflexo do colapso do sistema político chileno.

Alguns analistas fazem um balanço desses 20 anos recorrendo a duas grandes vertentes do pensamento político que, digamos, dividiu a ciência política e os militantes em torno desse período.

Qual a razão, então, de as políticas neoliberais chilenas ainda atraírem tantos adoradores, como Jair Bolsonaro, que acreditam que a ditadura chilena é justamente a responsável pelo “sucesso” do Chile? Embora até Piñera tente renegar o passado autoritário…

 

De fato, Piñera quando foi eleito pela primeira vez em 2010 e depois nas últimas eleições procurou se afastar da imagem do Pinochet. Ele se apresentou à sociedade como um empresário bem sucedido, ele vem de uma família muito rica que possui uma das maiores fortunas do país, grande parte dela amealhada dentro dessa lógica do capitalismo rentista, foi dono de empresas aéreas, times de futebol…ele nunca produziu um parafuso e construiu grande parte da sua fortuna na  especulação financeira e se apresentou com um político moderno, com essa ideia de que o político é um administrador e o estado é uma empresa buscando se afastar da imagem tradicional da ditadura militar de Pinochet.

Então o Piñera não representa essa imagem tradicional que a direita, ou essa extrema direita a que você se refere tanto elogia. Não se trata disso. Agora, a política econômica que ele desenvolve é a política que predomina no Chile desde a ditadura militar, com todas as suas terríveis consequências sociais.

O Chile neste período do ponto de vista estritamente econômico vem crescendo. Em taxas muito menores hoje do que em anos atrás, diga-se de passagem. Esse crescimento não se transformou de forma palpável em desenvolvimento social. Pelo contrário. O Chile conseguiu ser, mesmo com crescimento econômico, um dos países mais desiguais da América do Sul, só perdendo para o Brasil

Isso é extremamente importante deixar claro: crescimento econômico não é (com algumas exceções) sinônimo de crescimento social. 

 

O Chile evidencia isso de forma muito clara. Não há desenvolvimento social mesmo havendo crescimento econômico, o que mostra a natureza excludente desse modelo. Aí você pega as mazelas sociais chilenas elas são mais evidentes onde? Em primeiro lugar, no mundo do trabalho. O salário mínimo chileno não garante o poder de compra para uma vida minimamente razoável.

Os salários são muito baixos e a vida é muito cara. Os aluguéis, o transporte, a moradia…tudo é muito caro.

O que causou agora este levante popular foram as passagens de metrô. Para quem ganha salário mínimo as passagens representam quase 30% do orçamento do mês. Então é muito caro o transporte.

Outro problema é questão da educação. O Chile tem boas escolas públicas, universidades públicas, a Universidade do Chile, a Concepción. Mas, ao contrário do que acontece no Brasil, as universidades públicas chilenas são pagas e são muito caras. Os alunos para se formarem contraem uma dívida que para ser quitada demora de 10 a 15 anos.

Também gostaria que falasse sobre a Reforma da Previdência chilena.

 

As iniquidades do modelo são muito evidentes, elas saltam às vistas. Não é só o baixo salário, na questão do mundo do trabalho você tem imensos obstáculos à organização sindical e às reivindicações coletivas. É um país onde os sindicatos são muito restringidos e isso faz parte dessas incongruências do modelo.

Políticas como que nós temos no Brasil em que inclusão de setores populares, população de baixa renda, cotas para negros, isso é absolutamente impensável no Chile porque é um modelo de educação como mercadoria. Ela é adquirida por quem pode pagar.

A questão da Previdência também é absolutamente problemática e injusta, sobretudo, porque implica no fim do modelo da repartição que é um modelo solidário, com a participação do estado…

Que é justamente o modelo utilizado no Brasil…

 

Justamente. No Chile, o modelo da capitalização foi inserido no período de Pinochet. Aliás, pelo irmão do Piñera, que foi ministro do Trabalho e da Previdência chilena. O que revela muito bem o DNA da família e sua afinidade ideológica com o antigo regime.

Apesar de todas essas injustiças e, no caso específico da Previdência, dessa disfuncionalidade econômica do modelo que agora está fazendo água e obrigando o Chile a introduzir reformas, em outras partes da América do Sul este modelo é vendido como se fosse a solução para a região.

Cada um defende o que quer, mas é uma postura absolutamente ideológica, sem nenhum fundamento na realidade de fato deste modelo (da capitalização).

Há relatos de que a Previdência tenha aumentado o número de suicídios entre idosos do país. Isso já bastaria para encerrar qualquer defesa do modelo previdenciário chileno…

 

Se não fosse um argumento ideológico, sim. Mas como é, os defensores do modelo não estão se importando em dar nenhuma prova do que estão falando. Tenho lido sobre essa situação (sobre suicídio), mas o fato é que 80% dos aposentados chilenos pelo regime de capitalização recebem menos que um salário mínimo. No Brasil e no Uruguai isso é proibido!

Daí você vê como o sistema gera permanentemente injustiças, seja com os jovens sem acesso à universidade gratuita e, consequentemente, ao futuro e a uma carreira profissional adequada. O sistema gera injustiças aos idosos tirando deles condições de sobrevivência…e é todo esse acúmulo de descontentamento que, do meu ponto de vista, está na origem desse levante que tivemos esses dias.

É um descrédito com relação ao sistema político que não fez as reformas estruturais exigidas pela sociedade e um repúdio à este modelo totalmente individualista, narcisista e egoísta que abandona todo mundo à sua própria conta e está na origem de uma desigualdade em razão da concentração de riqueza que este modelo produz.

É isto que está na origem deste levante.

Há quem compare este levante com o de 2013 no Brasil, como você avalia?

 

Essas mobilizações têm essa caraterística de acontecerem em grande parte por uma explosão de descontentamento, de um acúmulo de frustrações, normalmente legítimas, mas elas acontecem fora dos partidos, dos sindicatos, dos movimentos sociais organizados.

Mas a situação é diferente no Chile, pelas próprias peculiaridades do país. E vamos torcer para que o país, em democracia, consiga realizar as suas reformas estruturais que estão pendentes desde a redemocratização.

Mas não devemos ser ingênuos a ponto de acreditar que não existam riscos (para a democracia), sobretudo olhando para o exemplo brasileiro. Há, inclusive, suspeitas de que algumas invasões, saques, incêndios têm sido facilitados por setores das forças de repressão. Há inclusive imagens sobre isso.

Ao mesmo tempo existe da parte da sociedade uma reiterada manifestação pelas reformas econômicas que possam alterar o sistema do ensino, a reforma da Previdência…isso está posto em movimentos organizados que lutam há anos pela substituição do modelo de capitalização. Não é recente.

Assim como se vem lutando há muitos anos por um modelo sindical que aumente o poder de negociação coletiva que possa incidir sobre os salários.

Então essa agenda econômica precisa ser encarada. Agora, o Chile tem uma Constituição que foi criada durante uma das fases mais repressivas da ditadura. Pinochet tinha sofrido um atentado, fechou o regime e impôs um Constituição que vigora no país até hoje. Com pequenas alterações, essa Constituição é uma herança da ditadura e isso precisa ser enfrentado.

O país tem que se reencontrar com a sua memória e com a sua história para pensar um novo sistema político que permita aos chilenos uma certa estabilidade em democracia para o futuro.

Você tem um governo de direita, conservador, dirigido por um cara que tem no DNA os anos mais obscuros do país. Então é difícil para este governo ceder. No entanto, dada a magnitude das manifestações eu não descarto a possibilidade de que o Piñera venha a ceder.

Ele parece perdido e muitos apostam no recuo político…

 

Só o fato de ter voltado atrás no preço da passagem já é um recuo político. Ao mesmo tempo, ele colocou o exército nas ruas e decretou toque de recolher. Então são duas medidas opostas e que na prática, no caso chileno, colocar o exército nas ruas é muito grave.

Ao contrário do Brasil, há a desmoralização das forças armadas em razão do envolvimento nos crimes contra os direitos humanos, a memória disso é muito viva.

Nem a direita chilena quer ser associada à ditadura…

 

Justamente, não há espaço para isso no Chile. Isso não quer dizer que não exista uma parcela pró-Pinochet. Essas manifestações de hoje já fazem parte da cultura chilena, embora até os chilenos mais habituados com esses fenômenos estão assustados. Há uma certa perplexidade diante do que está acontecendo e com consequências graves. Pessoas estão morrendo.

Então, não é fácil no Chile as Forças Armadas realizarem uma ação autorizada pelo governo de toque de recolher. É como tentar apagar fogo com gasolina.

Por Henrique Nunes da Agência PT de Notícias

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