Artigo: Política exterior, as escolhas erradas do governo Bolsonaro

“Para onde vamos? Torna-se urgente buscar resposta a esta pergunta frente ao desastre total da política externa do governo Bolsonaro”, questiona José Dirceu em artigo

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José Dirceu: a situação real da economia, do emprego e da renda irão pesar nas eleições

Por que priorizar nossa integração a um clube de países ricos europeus, além dos Estados Unidos e Japão, quando abandonamos nosso espaço cultural e histórico natural que é a América do Sul e a América Latina, nos afastamos de nossos laços históricos com a África Ocidental e o mundo árabe e principalmente da China e da Ásia, que já são o futuro e emergem como nosso principal parceiro de investimentos, crédito internacional e comércio, além do acesso à tecnologia e a inovação onde se consolidam como vanguarda?

Para onde vamos? Torna-se urgente buscar resposta a esta pergunta frente ao desastre total da política externa do governo Bolsonaro. Não merecem comentários nem o desempenho do ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, discípulo de Olavo de Carvalho, nem a decisão, inconstitucional, de integrar nossas Forças Armadas ao Comando Sul norte-americano e à OTAN.

Ou, ainda, a fracassada tentativa de criar uma entidade ProSul com os governos de direita da América do Sul, agora ressuscitada depois da derrota no Chile do candidato que era chamado de Bolsonaro chileno.

Temos que nos preocupar, no entanto, com duas linhas de atuação da atual direção do Itamaraty, pois elas podem ter consequências reais: a antichinesa e a obsessão em fazer o Brasil membro da OCDE.

A primeira, por enquanto, não passou de ataques irresponsáveis do presidente, de seus filhos e de sua rede de fake news contra a China, logo abortada pela reação do agronegócio e da própria ministra da Agricultura.

Mas os ataques resultaram em gravíssimos prejuízos à imagem do Brasil, já desgastada pelo conjunto da obra do governo Bolsonaro, particularmente pela politica antiambiental e de desmonte do Ministério do Meio Ambiente e de seus órgãos, além da degradação da política indígena e da anulação da atuação de órgãos como a Funai e o Incra, com o abandono de toda e qualquer fiscalização e punição, controle ou repressão à ocupação de terras devolutas e reservas indígenas, carta de corso para a grilagem de terras, o desmatamento, a garimpagem e a exploração de madeira ilegal.

A integração à OCDE vem, na prática, acontecendo na área estratégica da abertura financeira e comercial. Significa que o Brasil está abrindo mão de sua condição de país em desenvolvimento, o que nem a China concorda em aceitar — e todos sabemos o nível de desenvolvimento econômico e científico alcançado pelos chineses.

A pergunta que se faz é: qual vantagem de o Brasil integrar a OCDE criada em 1961, ainda em consequência da II Guerra Mundial, para promover o desenvolvimento e estabilidade econômica de seus países membros? Hoje, a entidade tem 35 integrantes, alguns fora da Europa, como o próprio Estados Unidos, o México, a Nova Zelândia, o Japão e Israel.

O Brasil pleiteia ser membro e já cumpriu 103 dos 251 instrumentos normativos para atender os objetivos da entidade nos setores econômico, financeiro, comercial, social e ambiental. No guarda-chuva social estão as áreas do trabalho, da educação, da ciência e tecnologia.

A integração à OCDE visa, em seus objetivos, uma melhora nos setores trabalhados pela entidade, como comércio e investimentos, e em áreas consideradas prioritárias para o país a exemplo de educação e meio ambiente. Alguns estudos indicam que o Brasil teria um crescimento de 0,4% em seu PIB. No entanto, perde o tratamento especial que tem hoje de nação em desenvolvimento na OMC.

Em janeiro, o Brasil recebeu a carta convite para entrar na OCDE, pleiteada também por outros países como Argentina, Peru, Bulgária, Croácia e Romênia. Como admitiu Paulo Guedes, para isso o país teve que se comprometer em zerar o IOF, fazer reforma tributária e continuar a liberalização financeira.

Do lado de lá vieram três advertências: os candidatos deveriam promover o crescimento econômico sustentável e inclusivo, combater as mudanças climáticas e reverter o desmatamento e a perda da biodiversidade.

Escolha sem sentido

Por que priorizar nossa integração a um clube de países ricos europeus, além dos Estados Unidos e Japão, quando abandonamos nossa espaço cultural e histórico natural que é a América do Sul e a América Latina, nos afastamos de nossos laços históricos com a África Ocidental e o mundo árabe e principalmente da China e da Ásia, que já são o futuro e emergem como nosso principal parceiro de investimentos, crédito internacional e comércio, além do acesso à tecnologia e a inovação onde se consolidam como vanguarda?

Por que nos integrarmos a uma Europa em crise, começando pela ascensão de governos de extrema direita, do nacionalismo, da não aceitação da imigração, uma realidade inescapável no mundo de hoje, dividida como prova o Brexit, envolvida num conflito com a Rússia por conta do expansionismo militar e hegemônico dos Estados Unidos via Otan que ameaça a segurança russa e coloca a própria Europa sob risco de uma guerra?

Por que devemos tomar partido na guerra comercial e tecnológica que os EUA travam contra a China única e exclusivamente por seus interesses nacionais, na verdade sua perda de hegemonia econômica e tecnológica, além de sua decadência evidente como potência única mundial?

Só há uma explicação. A renúncia, pelas nossas elites, ao projeto histórico brasileiro de desenvolvimento nacional, soberano e independente, a rendição à tese de que não podemos nos desenvolver fora da hegemonia dos Estados Unidos e de um suposto mundo ocidental, teoria similar a que negava que o Brasil poderia de industrializar e deveria continuar a ser uma fazenda do mundo, ou de que nunca seríamos “civilizados” pela herança negra que recebemos da escravidão de milhões de africanos arrancados violentamente de suas origens e vendidos aqui, que nos levou à infame política estatal de “branqueamento” de nossa população. Ou, ainda, à ridícula pregação, que perdurou por décadas, de que não tínhamos petróleo em nosso subsolo.

Só interesses de classe e a manutenção do status explicam como podemos cerrar os olhos para as mudanças que revolucionaram a geopolítica mundial e a correlação de forças nas últimas décadas com a ascensão da China à categoria de potência mundial, ao ressurgimento da Rússia, ao protagonismo de novos atores como Índia, Irã e Turquia e à evidente perda de poder dos Estados Unidos e da Europa.

O que deve guiar nossa política externa são os interesses nacionais, nosso desenvolvimento econômico e social, nossa segurança e bem estar de nosso povo. É preciso partir do princípio de que somente seremos soberanos e independentes se garantimos nosso desenvolvimento tecnológico e científico, social e humano, cultural, condição para termos capacidade de nos defender inclusive do ponto de vista militar.

Acordos de livre comércio como era a ALCA ou o do Mercosul com a União Europeia, ou mesmo a entrada na OCDE devem estar subordinados ao interesse nacional e à realidade de que somos um país industrializado, um dos maiores mercados do mundo e um dos mais ricos em recursos naturais. Nossa bússola tem que ser nossos interesses e não os interesses dos Estados Unidos e Europa na América do Sul e na América Latina.

Não alinhamento

Temos uma longa tradição de não alinhamento às potências mundiais até porque somos uma potência média. Historicamente, sempre pautamos nossa diplomacia buscando nosso interesse nacional, seja com JK e sua Operação Panamericana; com Jânio Quadros e Jango Goulart com o não alinhamento expresso na Política Externa Independente; Ernesto Geisel, em plena ditadura, com seu “pragmatismo responsável”, que levou ao acordo nuclear com a Alemanha, ao rompimento do acordo militar com os Estados Unidos e ao reconhecimento de Angola, Moçambique e Guiné Bissau.

Quando entramos na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados, o fizemos em troca do aço e da energia, bases para a industrialização, sinônimo de desenvolvimento na época; segundo, portanto, nosso interesse nacional.

Nossa política externa deve se guiar, portanto, pela nossa Constituição de 1988 que estabelece que constituem objetivos fundamentais nossos: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional e erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O mais importante; estabelece que a República, nas suas relações internacionais, se rege pelos princípios da independência nacional, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não-intervenção, igualdade entre Estados, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos, repúdio ao terrorismo e racismo, cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e concessão do asilo político.

O parágrafo único desse artigo destaca: a República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural, dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana dos povos. Não resta dúvida de qual é o caminho a seguir.

José Dirceu, ex-deputado federal e ex-ministro do governo Lula.

Originalmente publicado no site Poder360.

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