As maternidades possíveis durante a quarentena

Puerpério, crianças sem escola, jornada tripla ao mesmo tempo e agora. Superações e frustrações de mães diante das mais diversas possibilidades de maternidade na pandemia

Ter ou não ter rotina, enfrentar o puerpério com bebês que nasceram em meio ao caos do mundo, fazer aula da faculdade trocando fralda, criar atividades com as tarefas domésticas, cada mãe teve que se reinventar e se redescobrir durante a quarentena.

Longe de romantizar o espírito de heroína, o fardo dos cuidados com a casa e com as crianças está ainda mais pesado. As frustrações  e angústias se acumulam junto com a roupa em cima da cama e a culpa se esparrama pela alma como os brinquedos pela sala. Com a ultra restrição de espaço e tempo para a individualidade das mães, a pandemia tem colocado uma lente de aumento sobre o difícil lugar das mulheres e da maternidade no mundo contemporâneo.

Para tentar aliviar a ansiedade, colhemos histórias reais de mães que enfrentam o cotidiano do confinamento da forma que conseguem — acumulando sucessos, frustrações e superações — para compartilhar experiências das diversas  maternidades possíveis, diante de uma situação emergência mundial. 

 

 

As duas primeiras semanas de quarentena foram as que exigiram maior capacidade de adaptação das mães. Muitas coisas que, aparentemente, seriam fáceis de superar, acabaram se tornando mais complexas; enquanto outras que sequer estavam no radar do cotidiano, acabaram surgindo. “No começo, eu tentei manter e ser rígida com a rotina deles.  Achei que isso ia dar um super apoio, mas tive que pensar em novas coisas e até abrir mão de exigências”, explica Maitê de Lara Sanchez, 33, servidora pública, mãe de dois filhos — Leon, 3, e Maia, 5. Maitê também divide a casa com o marido na Vila Mariana, centro expandido da capital paulista. Já no trabalho, a super vigilância produtiva também pesou muito. 

“Havia uma exigência de estar 100% do tempo disponível para o trabalho como régua de produtividade, até em horários que, antes, não era demandada”, desabafa Maitê. 

Enquanto isso, a economia de tempo gasto com transporte melhorou a relação de Dara Santos, 23, com os cuidados do filho Jorge, 2. Ela mora em Varginha, no Grajaú, periferia da zona sul de São Paulo, e gastava de 5 a 6 horas por dia no transporte público. No entanto, o que era para ser um alívio, acabou se transformando em outro fardo. As atividades da faculdade e do trabalho se intensificaram e ela se viu diante de demandas redobradas somadas às tarefas em tempo integral com o filho no colo. “Isso foi péssimo. Eu já não tinha muito tempo antes, era tudo com muito esforço. Agora, com Jorge em casa é mais difícil”, revela. Dara é mãe solo e mora com o filho, três irmãos e a mãe que trabalha como babá. A mãe de Dara está em casa e recebe uma porcentagem do salário paga pela patroa. 

Se as duas primeiras semanas foram difíceis, a situação de Julia Martin, 31, é ainda de maior tempo de isolamento. Julia é jornalista e mãe do Leo, de 2 meses, que nasceu poucos dias antes do decreto oficial da quarentena no estado de São Paulo. No entanto, ela enfrentou uma tendinite gestacional que a afastou do trabalho e do convívio social ainda no final de janeiro. “Não sabia q esse “descanso” seria por tempo indeterminado”, afirma Martin.  Para Julia, o pior desafio foi a recuperação do parto e as consequência da cesárea, amamentação, bebê em casa e precisar de ajuda para coisas extremamente básicas.

 

 

“É TV na veia”, diz Maitê sem meios termos. Ela e o marido fazem teletrabalho em horário comercial e as crianças estão sem aula. Leon e Maia estudam na rede pública municipal e o currículo da Prefeitura de São Paulo prioriza o livre brincar na primeira infância, portanto a escola não oferece aula online. Manter a rotina acordando às 7h da manhã, almoçar e estabelecer horários foi um recurso utilizado pela família. 

 

“No começo, foi o caos total. Me sentia muito culpada por deixar as crianças na TV. Com o tempo, a gente foi lidando melhor. E é isso. É o que dá. É o que estamos fazendo”, relata Maitê.

 

Se estabelecer uma rotina pode parecer um recurso universal, a verdade é que no exercício da maternidade a regra é não ter regra. No cotidiano de Dara Santos, mãe solo, que trabalha, estuda e mora com mais quatro pessoas, essa não é a principal preocupação.    

“Eu acho legal quem consegue fazer rotina. Pra mim, não tem adaptação com uma criança. Vai do jeito que dá, da forma que dá. Não tenho tempo de sentar e organizar”, revela. A alternância do comportamento de uma criança de dois anos exige atenção e disponibilidade, um recurso valioso para quem precisa dividir esse tempo com trabalho e estudo. “Não posso esperar ter a mesma produtividade do que alguém que não tem filho e não vive a mesma realidade que a minha. Antes eu sofria muito, agora estou melhor”, afirma a universitária que mora no Grajaú. 

Já as mães de puerpério possuem uma rotina ainda mais própria e peculiar, mesmo dentro de casa. Julia Martin optou por amamentar em livre demanda e isso a deixa muito conectada com o ciclo de fome do bebê que pode ser a cada três horas, mas também a cada uma hora ou quarenta minutos. Julia vive com o marido que trabalha em home office e fica trancado no escritório em horário comercial. Ela conta com a ajuda de duas irmãs que se alternam para dar uma força nos cuidados com a casa, ainda mais com a limpeza necessária para recém-nascidos. 

 

O isolamento trouxe privações sérias para quem acabou de sair de uma cesárea, Julia não conseguiu ver a própria médica, portanto ela não teve consulta pós parto. Ambas avaliaram que era mais arriscado um deslocamento para avaliar o corte da cesárea e correr o risco de ser contaminada do que fazer consultas por meio de plataformas digitais. “Eu ainda não consegui falar sobre métodos contraceptivos, sobre retorno da minha menstruação, e tantas outras dúvidas que pairam sobre o meu corpo nesse momento”, afirma Julia. 

 

Dara Santos acorda de manhã já com o fone de ouvido para ouvir a aula da faculdade enquanto faz mamadeira, controla o choro, troca a fralda e faz comida. Ela tem 23 anos, é estudante universitária, faz estágio na área audiovisual, mora com mais quatro pessoas na casa e admite que não consegue fazer das aulas um momento produtivo. A solidariedade de uma amiga da universidade ajuda Dara a realizar os estudos. “Eu tenho uma amiga que sempre pego o que passou na aula, quando tem algum trabalho, porque eu não consigo prestar muita atenção. Ela me ajuda muito”, afirma a estudante.  

 

Dara Santos, 23, e o filho Jorge, 3

 

A auto cobrança é constante na vida de Dara e se intensificou na pandemia. Ela é cotista e tem 100% de bolsa de estudos financiada pelo ProUni, programa do governo Lula. “Eu não conseguiria fazer essa faculdade se não fosse pela bolsa. Então é muita frustração em relação à casa e aos estudos, no sentido de que eu deveria estar me empenhando mais. Foi um processo até entender que existem coisas que estão para além de mim”, afirma. 

 

 

 

Julia Martin, 31, é jornalista e mãe do recém-nascido Leo, de dois meses. Por tendinite gestacional, Julia está em isolamento social desde final de janeiro. O filho Leo nasceu dias antes do decreto oficial da quarentena. Se o mundo lá fora enfrentava transformações, o mundo de dentro de Julia também mudava radicalmente.  

 ‘Estou vivendo uma nova identidade que me afasta da pessoa profissional, da mulher que eu costumava ser, tudo é diferente, meu corpo inteiro está de outro jeito”, relata Julia Martin. Para a jornalista, estar isolada nesse momento da vida significa não poder conversar, não ter  atendimento médico, estar afastada da mãe doente — que não consegue acompanhar o crescimento do neto pessoalmente –, e montar uma verdadeira operação de guerra para ir ao supermercado para comprar, além de alimentos, roupas para o neném que cresce absurdamente. 

Julia Martin, 31, mãe do Leo, que nasceu dias antes de começar a quarentena

 

Essa mistura de pandemia e puerpério tem afetado a saúde mental da mãe de primeira viagem. “Teve um dia que eu estava extremamente estressada, descontando no Thiago, em mim mesma, auto estima muito baixa, estar respirando esse mesmo ar durante muito tempo é muito difícil. Choro e fico sensível como todo puerpério deve ser”, pondera Julia. 

A jornalista e mãe do Leo afirma ter consciência da importância do isolamento para lidar com a situação de maneira coletiva. “O que me move nesses dias é essa força política”. Ainda assim, ela reforça que a quarentena é complicada: “A gente que tem bebê pequeno tem muito medo de ser contaminado, mas a gente também quer o carinho das pessoas”

 

 

Para superar os dias longos e cansativos da quarentena, cada mulher precisou encontrar na própria rotina (ou na falta dela) momentos que fazem a diferença no exercício da saúde mental. Esses momentos podem ser de auto cuidado ou até mesmo reorientação de atividades coletivas, voltadas para o respeito à própria individualidade. 

Trocar de roupa, não ficar de pijama o dia inteiro, levantar e pentear o cabelo foram estratégias adotadas por Júlia, mãe de recém-nascido, para aliviar o cotidiano e os cuidados consigo mesma. Outra estratégia adotada por ela foi abrir mão de meia hora de sono, depois que o bebê volta a dormir às 6h da manhã, e ter um momento de café da manhã sozinha. “Acordo, tomo meu café, como uma fruta, escuto uma música no fone de ouvido, tem sido muito importante. Dura vinte minutos a meia hora no máximo, mas vale a pena”, relata Julia Martin.

Maitê, mãe de dois, faz terapia semanalmente e conta que, no começo da quarentena, recebeu diversos e-books e links com dicas de atividades lúdicas infantis, mas isso não fazia parte dela: “Não vou ser a mãe que monta foguetes de papelão. Não adianta”. 

Família de Maitê, mãe de Maia, 5, e Leon, 3.

 

Essa pressão acabava gerando mais uma ansiedade do que, necessariamente, resolvendo um problema no cuidado com as crianças. Então Maitê optou por não forçar uma situação desconfortável para ela tampouco para o companheiro e, agora, eles tentam se conectar com a rotina da casa de uma forma prazerosa.  “A gente joga bola, rega planta, faz um desenho, monta quebra cabeça, faz panqueca, pinta a casa, faz almoço faz bolo”, explica. Para a servidora, essa mudança na perspectiva melhorou muito a relação entre todos os membros da família, até porque as brigas e as exigências pela realização das tarefas têm diminuído. 

Organizar o que é possível tem sido a palavra-chave de Dara Santos para se libertar da sensação de improdutividade.  “Só de conseguir organizar um pouco e acumular menos atividades, eu fico muito aliviada”, afirma a estudante. Ainda assim, levantar a própria voz e dizer para professores incompreensíveis e demandas inalcançáveis tem sido a principal estratégia de Dara.

 

Dara afirma que é em momentos como esse que fica ainda mais evidente como a pandemia afeta diretamente as mães e quem mora nos extremos. Para encarar esses fatores e não se deixar abater, ela tomou diversas iniciativas como começar a falar: ‘oh, não vou conseguir entregar. Óh tem muita demanda, não tem como fazer. Tem gente que não tem uma internet boa’.

 

Para a estudante de audiovisual, a quarentena só reforçou desigualdades e revelou como as instituições não estão preparadas para a maternidade, principalmente em mães jovens como ela.

 

 

Se a maternidade contemporânea, em plena pandemia mundial, significa uma rotina bruta e asfáltica de acúmulos, angústia e culpa, também é verdade que a humanidade e seus carinhos delicados furam as camadas do cotidiano. Com mais tempo para passar com as crianças, os comportamentos mudam, o olhar generoso das mães captam com mais sutileza o passar dos dias, o envolvimento das famílias e dos casais tomam outra dimensão e isso não escapa à sensibilidade materna. 

“Agora, eu passo mais tempo com meu filho e percebi como faz diferença na vida dele. Ele está mais calmo”, relata Dara Santos, mãe do Jorge, de dois anos. Maitê não achava que conseguiria passar tanto tempo confinada com as crianças e o marido, mas apesar dos atritos, ela afirma que tem sido proveitoso:  “Eu vi que a fala do Leon desenvolveu bastante. Eu fico emocionada de acompanhar passo a passo, com delicadeza, atenção e tempo que, provavelmente, em uma outra situação eu não perceberia. Isso tem sido bastante valioso”. 

Com a recuperação cirúrgica, Julia Martin comemora o restabelecimento da saúde, o vínculo ainda maior que criou com as irmãs e o fato do bebê dormir 5 horas seguidas. “O Léo é extremamente tranquilo e meu companheiro participa bastante da paternidade”, afirma. 

 

Confira a segunda reportagem do Especial Dia Das Mães | “Maternidades possíveis durante a quarentena”

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