Bolsonaro veta recursos para pandemia e sabota estados e municípios
Presidente impede repasse de R$ 8,6 bilhões para governadores e prefeitos comprarem materiais de combate à pandemia do coronavírus. Oposição se movimenta para derrubar o veto no Congresso. Ex-ministro Arthur Chioro acusou o governo de inoperância ao dificultar o envio de recursos para governadores e prefeitos
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A atitude deliberadamente sabotadora do presidente Jair Bolsonaro em relação aos esforços para se deter a pandemia do coronavírus no Brasil ganhou mais um episódio nesta quarta (3). Pela manhã, o ‘Diário Oficial da União’ trouxe publicada a Lei nº 14.007/2020, com vetos a dispositivos que possibilitariam repasses de R$ 8,6 bilhões para estados e municípios comprarem insumos médico-hospitalares.
No ano passado, o Poder Executivo editou Medida Provisória que previa a extinção do Fundo de Reserva Monetária e liberava os recursos para o pagamento da dívida pública federal. Mas um projeto de lei de conversão aprovado em maio pelo Congresso determinou que a verba do fundo, mantido pelo Banco Central para a intervenção em mercados de câmbio e títulos, além da assistência a bancos, seriam repassados diretamente a estados e municípios.
O governo afirmou que a proposta dos parlamentares diverge do ato original da Medida Provisória, e que isso criaria uma despesa obrigatória sem previsões de impacto nos próximos anos, o que também seria irregular. O veto foi defendido pelo Ministério da Economia e pela Advocacia-Geral da União. Para o governo, a medida tem caráter de urgência por permitir o uso dos R$ 8,6 bilhões disponíveis para abater a dívida.
Os dispositivos vetados transfeririam os recursos para a conta única da União e os destinariam metade a estados e Distrito Federal, e metade a municípios. O rateio deveria considerar os casos observados de Covid-19 e os governos só poderiam receber os recursos se observassem protocolos e regras estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Outro dispositivo vetado previa que os valores de todas as contratações ou aquisições deveriam ser publicados na internet.
A oposição já se movimenta para derrubar o veto presidencial. Em sessão virtual do Senado, o senador Humberto Costa (PT-PE) atacou a medida de Bolsonaro. Para ele, o presidente continua a “fazer deboche” com a situação, dizendo que “morrer é o destino de todos”. Humberto afirmou que o governo federal não está tomando nenhuma ação efetiva para combater o vírus.
“O Ministério Público agora mostra que o governo federal não transferiu os recursos necessários, adequados e aprovados pelo Congresso Nacional para estados e municípios enfrentarem a pandemia do coronavírus”, criticou Humberto. “Vimos também a ausência de uma linha geral, de uma orientação do governo, para enfrentar a pandemia e organizar uma eventual saída da quarentena para a reabertura das atividades econômicas”.
Segundo Humberto, o povo brasileiro está desassistido, já que milhões de pessoas não receberam os recursos do auxílio emergencial, pequenas empresas não conseguem financiamentos e estados e municípios continuam esperando pela ajuda federal.
“O pior de tudo isso é que o presidente da República, ao invés de assumir a posição de liderar a luta contra o coronavírus, provoca crises e mais crises, dia a dia, procurando aglutinar forças para o seu objetivo de aplicar um golpe militar no Brasil e tornar-se ditador do país”, criticou.
Até um membro da base do governo no Congresso, o deputado Luís Miranda (DEM-DF), relator do texto na Câmara, disse que a ação de Bolsonaro representa uma quebra de compromisso assumido pelo governo. “Houve acordo com o governo, a gente consultou o Ministério da Economia e o Banco Central. O líder do governo no Senado foi o relator da matéria quando chegou ao Senado”, declarou ao site ‘Congresso em Foco’.
“Por que esse presidente é tão do contra? Por que o presidente veta recursos da saúde que iriam aos municípios e estados? Por que ele prefere pagar bancos antecipados, a destinar recursos aos mais necessitados? Que inferno ser parlamentar com um presidente tão egoísta…. Ele te obriga a ser do contra, a ser oposição, onde para ajudar o país, você tem que ser contra o presidente, isso é um absurdo”, desabafou o deputado, que prevê: “O veto vai ser derrubado”.
Sabotagem contra estados
Em maio, Bolsonaro decidiu pelo veto em outra lei, em trecho que interessava a estados. O projeto previa que a União não suspenderia repasses do Fundo de Participação dos Estados (FPE) caso pagasse dívidas com bancos internacionais.
A equipe econômica defendeu a manutenção da regra, mesmo na pandemia: se um estado deixar de pagar um banco multilateral, como o Banco Mundial, o Tesouro cobre as parcelas, mas, como contrapartida, retém uma parte dos repasses via FPE. Para os governadores, isso vai inviabilizar a suspensão do pagamento das dívidas com organismos multilaterais, o que traria um alívio de R$ 10,7 bilhões.
Em reunião do Diretório Nacional do PT nesta segunda (1º), o ex-ministro da Saúde Arthur Chioro afirmou que Bolsonaro abandonou a população à própria sorte em meio à pior crise sanitária da história. “A omissão do governo é grave, porque deixa de lado medidas para manter um controle mínimo na gestão da crise de saúde”, disse Chioro, que é médico sanitarista.
Segundo o ex-ministro, o ponto mais preocupante é o fato de que o governo federal não tem conseguido cumprir nem com o que já foi determinado. Não entregou ainda a maior parte de testes, respiradores e leitos em Unidades de Terapia intensiva (UTIs) assegurados.
O Ministério da Saúde também havia anunciado 46,2 milhões de testes, mas até agora entregou apenas 10 milhões (21%). Dos 14.100 respiradores anunciados, só foram entregues 1.612 (11%), e dos 3 mil leitos anunciados, apenas 540 (18%).
“O governo federal desdenha e o Ministério da Saúde está completamente ausente. Ou só tem atrapalhado, como quando apresentou o protocolo da cloroquina, para recomendar a adoção de um medicamento cuja eficácia ainda não foi assegurada pela Organização Mundial da Saúde”, afirmou Chioro, que é o coordenador do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas de Saúde (NAPP-Saúde) do PT.
Chioro lembrou que Bolsonaro é o único presidente no mundo que, em meio ao coronavírus, fez dois chefes da pasta de Saúde caírem em menos de um mês. Também acusou o governo de inoperância ao dificultar o acesso de governadores e prefeitos aos recursos financeiros para a compra de equipamentos.
“É uma execução baixíssima para uma situação de tamanha gravidade, que não cumpre absolutamente nada. O Mandetta já não entregava o prometido, o ministro Teich foi uma perda de tempo, e o atual ministro não entende o funcionamento do sistema de saúde. O ministro interino [Eduardo Pazuello] está há mais de 17 dias e não conseguiu mudar em absolutamente nada a capacidade de resposta”, analisou Chioro em entrevista à revista ‘Carta Capital’.
Inquérito contra baixa execução orçamentária
Levantamento da Assessoria Técnica da Liderança do PT no Senado Federal realizado nesta quarta (3) aponta que o Ministério da Saúde segue executando muito pouco da previsão orçamentária para o enfrentamento da pandemia e sequer alcançou 30% do montante. Até o momento, o governo pagou R$ 9,2 bilhões de um orçamento de R$ 34,5 bilhões. Nas aquisições diretas, pagou R$ 1 bilhão de um total de R$ 11,6 bilhões. Para os entes subnacionais, ainda há R$ 14,5 bilhões a transferir. Enfim, os valores pagos são menos de 30% do orçamento.
Nesta terça (2), o Ministério Público Federal (MPF) determinou a abertura de inquérito civil público para apurar a baixa aplicação de dinheiro público por parte do governo de Bolsonaro no combate à pandemia. Na ação, os procuradores destacam que em relação ao montante previsto para transferências para estados e municípios, “além da execução tímida”, foi verificada uma redução dos repasses a partir de 13 de abril.
“É fato notório que o número de casos confirmados de Covid-19 continua em ascensão, destacando-se o Brasil em relação aos demais países do mundo pelo alto número de casos por habitante, de forma que se esperaria a utilização dos recursos disponíveis para seu enfrentamento de imediato”, diz trecho da ação.
Conforme informações prévias obtidas pelos procuradores, do montante de R$ 11,74 bilhões disponibilizados para execução direta, pelo Ministério da Saúde, somente R$ 2,59 bilhões haviam sido empenhados e apenas R$ 804,68 milhões foram efetivamente pagos até 27 de maio. Isso significa que, até a data verificada pelo MPF, apenas 6,8% dos recursos disponíveis haviam sido gastos.
O inquérito vai averiguar as razões pelas quais a União não vem utilizando as verbas orçamentárias disponíveis para o enfrentamento da pandemia, assim como os motivos pelos quais os repasses a estados e municípios têm sofrido retenção. Sua instauração foi motivada pelo recebimento de uma representação com dados contidos em páginas oficiais do próprio Ministério da Saúde.
Segundo o MPF, o estudo evidencia uma possível ineficiência da União para enfrentar os desdobramentos da Covid-19 na área da saúde em, ao menos, três aspectos: pouca utilização dos recursos previstos para despesas – especialmente nos de aplicação direta pelo Ministério da Saúde-, demora na liberação de recursos aos demais entes federativos e pequena participação da União no custeio da saúde, em relação ao financiamento total assumido pelos entes federativos.
O MPF solicitou ainda informações ao Ministério da Saúde, ao Conselho Nacional de Saúde, ao Conselho Nacional dos Secretários da Fazenda, à Frente Nacional de Prefeitos e à Confederação Nacional de Municípios para contar com documentos que possam subsidiar o inquérito. Os órgãos têm dez dias para prestarem informações.