Das fogueiras ao Levante Feminista Contra o Feminicídio
Ana Liési Thurler, socióloga, Secretaria de Mulheres PT-DF.
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Não pense em me matar é a chamada do Levante Feminista contra o Feminicídio, lançado neste março, quando marcamos o terceiro ano do feminicídio político de Marielle Franco e mantemos a pergunta: Quem mandou matar Marielle?
Entre o fim do século XV e meados do século XVIII, na sociedade cristã ocidental, aconteceu a caça às bruxas com a mais radical repressão ao feminino. Rose Marie Muraro, com English e Ehrenreich, registrou: “A partir de meados do século XVI, o terror se espalhou por toda a Europa, começando pela França e pela Inglaterra. Um escritor estimou o número de execuções em seiscentos por ano para certas cidades, uma média de duas por dia, exceto aos domingos. Novecentas bruxas foram executadas num único ano na área de Wertzberg, e cerca de mil na diocese de Como. Em Toulouse, quatrocentas foram assassinadas em um único dia…” (Introdução Histórica, Malleus Maleficarum, Rosa dos Tempos, 1991, p.13). Muitos historiadores estimam que, ao longo de três séculos, entre quarenta e cinquenta mil mulheres morreram na fogueira. A estimativa mais alta é apresentada por Marilyn French (1929-2009), feminista estadunidense: nesse período, cem mil mulheres teriam perdido a vida na fogueira.
No Brasil, em um período de pouco mais de três décadas – entre 1980 e 2013 -, 106.093 mulheres foram assassinadas por sua condição de gênero, grande parte por maridos e ex-maridos, namorados e ex-namorados, atesta o Mapa da Violência (Flacso, 2015). Verdadeiro banho de sangue, verdadeiro femigenocídio intensificado após o golpe de 2016. Esse quadro foi agravado com a pandemia. No primeiro semestre de 2020, foram assassinadas 648 brasileiras, a maioria negra, periférica, vulnerabilizada pelo patriarcado e pelo colonialismo.
No século XXI, feminicídios reverberam fogueiras medievais mantendo a mesma pretensão de exterminar mulheres insubordinadas, terminando relacionamentos afetivos e invadindo um espaço, supostamente, masculino. Homens querem continuar detendo o direito exclusivo de decidir terminar relacionamentos. É ofensivo ao homem que uma mulher não queira mais se relacionar com ele. Mulheres insubmissas à ordem patriarcal ainda hoje são punidas com a pena de morte.
Feminicídios são crimes do patriarcado, são violação máxima dos Direitos Humanos das Mulheres. Feminicídios são asssassinatos de mulheres que inutilmente buscaram ajuda: lavraram Boletins de Ocorrência, pediram Medidas Protetivas. E o Estado patriarcal não barrou suas mortes. Mesmo nessa situação-limite, entretanto, a mulher ainda é apontada como culpada pela própria morte: não teve iniciativa, não buscou ajuda, não fez Boletim de Ocorrência. O movimento feminista, unanimemente, tem respondido: A vítima nunca é culpada.
Feminicídios são crimes de ódio, não são crimes de paixão. Menos ainda crimes cometidos em legítima defesa da honra, argumento que já não pode ser usado diante dos Tribunais (decisão do STF, em 11.03.2021, http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=462336&ori=1). Desde a morte de Ângela Diniz, em 1976, e o julgamento de seu assassino Doca Street, em 18.10.1979, com a lógica patriarcal transformando a vítima em ré, o movimento feminista recusa o uso desse argumento. Graças a reação veemente das mulheres, esse julgamento foi anulado e, em 1981, em novo julgamento, o criminoso foi condenado.
De Guadalupe
ao Levante Feminista Contra o Feminicídio:
notícias trágicas da capital do país.
Em julho de 1987, Thais Mendonça foi assassinada por Marcelo Bauer, ambos estudantes na Universidade de Brasília. O Fórum de Mulheres do Distrito Federal organizou um ato em memória de Thais. Na celebração, na igreja da Nossa Senhora Latino-americana – aquela mesma aqui na Asa Sul e em todos os lugares no México -, Nossa Senhora de Guadalupe, sob forte emoção, lembramos outras mulheres vítimas dessa violência extrema. Foi o primeiro ato realizado em Brasília, em memória de mulheres assassinadas nessas circunstâncias. Não existia o crime de feminicídio, nem sua tipificação. A DEAM (Delegacia Especial de Atendimento à Mulher), foi criada no ano anterior no DF, mas não fez diferença para salvar a vida de Thais. Ela só não quis continuar o relacionamento. Ele só tinha vinte anos, mas não reconheceu o direito de escolha dela e, como um velho patriarca, atingiu-a com um tiro na cabeça e dezenove facadas pelo corpo. Fugiu da Justiça, fugiu do país. Inicialmente para a Dinamarca e, após, para a Alemanha. Em 2014, o STF confirmou a condenação de M.B., julgado à revelia. Ele foi preso lá, onde talvez se imaginasse protegido, pois tinha a cidadania alemã.
A Lei do Feminicídio – Lei 13.104/2015 –, aprovada em 09.03.2015, inscreveu o feminicídio no Código Penal, mas não impediu a continuidade dos assassinatos de mulheres. No Distrito Federal, desde a aprovação da Lei até dezembro de 2020 foram registrados 114 feminicídios. Entre as vítimas, a idade média é de 37,2 anos; 58,4% se declaravam pardas e 41,6% tinham cursado o Ensino Médio. Entre os matadores, a idade média é 37,5, sendo que 27,2% tinham entre 19 e 29 anos; 60,5% se consideram pardos e 38,6% tinham ensino fundamental. Entre as vítimas, 66 eram mães, deixando 137 órfãos, sendo 48, filhos também do feminicida. Entre esses órfãos, 84 (62%) são crianças e 53 adolescentes; 49 (36%) perderam a mãe e o pai. O Deputado Distrital Fábio Félix apresentou Projeto de Lei propondo a criação do Programa Órfãos do Feminicídio com o objetivo de oferecer proteção integral e prioritária a essas crianças e adolescentes. O PL ainda não foi aprovado na Câmara Legislativa do DF.
E a Pec 75/2019, apresentada por Rose de Freitas (Podemos/ES), propõe dar ao crime de feminicídio caráter inafiançável e imprescritível, (alterando o inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal). Se aprovada, o Estado brasileiro reconhecerá o feminicídio como uma das mais graves formas de violência.
Feministas, mulheres organizadas em diversas instâncias têm promovido há décadas, mobilizações para erradicar o quadro de femigenocídios no Brasil. E agora, quando a violência contra as mulheres e os feminicídios cresceram, após o golpe de 2016, e se agravaram em meio a essa pandemia devastadora, surgiu a iniciativa com caráter nacional do Levante Feminista Contra o Feminicídio, com lançamento em 25 de março. O Levante combate a política de militarização deste governo – colocando militares sem nenhum preparo em postos-chaves mesmo na saúde e em meio a uma crise sanitária, e autorizando acesso e porte de armas -, pretende erradicar o femigenocídio e conclama à construção de uma democracia fortalecida.
Mobilizemo-nos em torno deste Levante. Assinemos e peçamos assinaturas. Participemos. Não aceitemos a matança das mulheres brasileiras, pelo machismo e pela misoginia, por um Estado patriarcal, negligente na preservação da vida das mulheres.
#NemPenseEmMeMatar #NemPenseEmNosMatar