Agora, são os ministros que aderem a campanha da cloroquina
Onyx Lorenzoni e Milton Ribeiro anunciam ter Covid-19, mas estão medicados com a panaceia bolsonarista. Campanha governista pela administração da droga se intensifica, à medida que instituições científicas desaconselham seu uso
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O culto bolsonarista à cloroquina ganha mais dois apóstolos – e do primeiro escalão. Com poucas horas de diferença, a novo ministro da Educação, Milton Ribeiro, informou na tarde desta segunda (20) em uma rede social que está com Covid-19, após outro colega de Esplanada, o titular da Cidadania, Onyx Lorenzoni, também ter dito que estava com a doença causada pelo novo coronavírus.
Milton Ribeiro, que assumiu o cargo na quinta (16), é o quarto ministro do governo Bolsonaro a ser contaminado pela doença. Em março, logo depois do retorno de viagem presidencial a Miami, os ministros das Minas e Energia, Bento Albuquerque, e do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, foram diagnosticados com Covid-19. Há cerca de um mês, o porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, também teve a doença diagnosticada.
“Acabo de receber agora pela manhã resultado positivo para Covid. Já estou medicado e despacharei remotamente”, informou no Twitter o quarto ministro da Educação em um ano e meio de desgoverno Bolsonaro. Mais cedo, também no Twitter, Lorenzoni havia dito que começou a sentir sintomas no dia da posse do colega, fez o exame na sexta e nesta segunda teve o resultado positivo.
Como o presidente, Onyx anunciou ainda que está tomando um coquetel de medicamentos que inclui azitromicina, ivermectina e cloroquina, e alegou estar sentindo “efeitos positivos”. Nenhum deles tem efeitos comprovados contra a Covid. As pesquisas mais sérias mostram, por outro lado, que a cloroquina, especialmente, pode ter efeitos adversos, como arritmia cardíaca. A droga, no entanto, inicialmente adotada como bandeira, vem se tornando objeto de adoração dos seguidores do mito.
No domingo (19), Bolsonaro protagonizou uma cena bíblica com apoiadores que se aglomeravam em frente ao Palácio da Alvorada. Após cumprimentar os simpatizantes, Jair Messias retirou uma caixa do remédio do bolso e a exibiu para os presentes, que aplaudiram o medicamento aos gritos de “cloroquina, cloroquina!”.
O vídeo foi transmitido ao vivo pelas redes sociais do presidente e o trecho da saudação ao remédio logo viralizou. “78 mil mortos e o Bolsonaro exibe cloroquina como se fosse um troféu e uma cura milagrosa”, comentou um usuário do Twitter.
Em 7 de julho, quando anunciou que havia contraído Covid-19, Bolsonaro repetiu 17 vezes o nome do medicamento. Na quinta, em sua live pelo Facebook, deu uma declaração confusa sobre a cloroquina. “Ainda tem estado, eu pedi para a Saúde levantar, que está proibindo a tal da cloroquina. A hidroxicloroquina. Tá proibindo. Se não tem alternativa, por que proibir? ‘Ah, não tem comprovação científica que seja eficaz’. Mas também não tem comprovação científica que não tem comprovação eficaz. Nem que não tem, nem que tem”, disse.
Para propagar as boas novas, o mito conta com ampla rede de desinformação, ainda operante após ações do Supremo Tribunal Federal (STF) para conter o chamado gabinete do ódio. Reportagem do jornal ‘O Estado de São Paulo’ sobre uma pesquisa do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) da USP com o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), mostra que no Youtube, antes das primeiras mortes no Brasil, uma rede formada por religiosos já havia atingido, em 47 dias, 11 milhões de visualizações em vídeos que citavam o novo coronavírus. Nos vídeos, ampla difusão de teorias da conspiração e de alegadas pesquisas que comprovariam os efeitos milagrosos da cloroquina e seus derivados.
Em junho, um levantamento feito pelo portal ‘G1’ revelou que ao menos 79 denúncias foram registradas contra médicos e enfermeiros por divulgação de fake news ou ‘curas milagrosas’. Em 40 casos, foram abertas sindicâncias para apurar a denúncia. Em seis, já há processos éticos.
Fé cega e fake news
Na sexta, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) alertou que o país deve retirar “imediatamente e com urgência” a hidroxicloroquina de todas as fases do tratamento do novo coronavírus, para que não seja mais gasto “dinheiro público em tratamentos que são comprovadamente ineficazes e que podem causar efeitos colaterais”.
A entidade também demandou que o dinheiro fosse usado no que de fato pode salvar pacientes: anestésicos para intubação; bloqueadores neuromusculares para pacientes que estão em ventilação mecânica; oxímetros para diagnóstico de hipóxia silenciosa; testes RT-PCR; leitos de UTI; contratação de profissionais de saúde; e compra de respiradores.
Como Bolsonaro gastou dinheiro público em milhões de pílulas de hidroxicloroquina que continua precisando escoar, logo após a publicação do alerta, membros da SBI passaram a sofrer ataques virtuais. E nesta segunda, a Associação Médica Brasileira (AMB) – aquela que atacou o Programa Mais Médicos sempre que pôde – publicou nota pública defendendo a autonomia dos profissionais para receitarem a hidroxicloroquina a pacientes da Covid-19.
Embora reconheça não haver, por ora, “estudos seguros, robustos e definitivos sobre a questão”, a entidade, responsável pela mobilização que levou à escolha de Nelson Teich como ministro da Saúde após a saída de Luiz Henrique Mandetta, diz ser “importante lembrar que o uso off label (não prevista na bula) de medicamentos é consagrado na medicina, desde que haja clara concordância do paciente”.
A nota da AMB, que também afirmou ver motivação política nas críticas ao fármaco, foi imediatamente republicada no perfil do Twitter de Bolsonaro. No mesmo dia em que a SBI publicou sua nota, o Ministério da Saúde, em resposta, já havia voltado a defender seu protocolo, um dos mais liberais no mundo quanto ao uso da cloroquina e derivados. O secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos, Hélio Angotti Neto, disse que “não há um consenso científico” sobre a droga.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que tem sido pressionada pelo ministro da Saúde interino-permanente, general da ativa Eduardo Pazuello, a recomendar o uso da droga, participa do estudo Solidarity, da OMS, cujos testes com a cloroquina e a hidroxicloroquina foram suspensos em 17 de junho, porque todos os resultados obtidos até então apontavam que as substâncias “não reduziam a mortalidade dos pacientes”.
Outro grande estudo sobre a eficácia dos remédios, o Recovery, foi conduzido pelo Reino Unido com a participação de mais de 11 mil pacientes. Também em junho, seus principais coordenadores emitiram um comunicado concluindo que “não há efeito benéfico” no uso da hidroxicloroquina.
A publicação científica Annals of Internal Medicine foi outra instituição renomada a mostrar que a hidroxicloroquina não curou ou acelerou a resposta imunológica de pacientes da covid-19 nos Estados Unidos. A pesquisa, feita pela Universidade de Minnesota, acompanhou 491 pessoas com diagnósticos positivos. Sem internação, após cinco dias de sintomas, metade dos pacientes recebeu doses da hidroxicloroquina, e o restante recebeu placebo. Os resultados foram estatisticamente iguais para ambos os grupos, tanto em número de internações, mortes e persistência de sintomas.
Perseguição e ameaças de morte
Em 10 de julho, a OMS, ao ser questionada sobre as afirmações de Bolsonaro sobre o uso de cloroquina, confirmou que não indica o uso para pacientes infectados com o novo coronavírus. “A OMS não indica o uso da cloroquina em pacientes de coronavírus porque não conseguimos demonstrar um benefício claro a eles”, afirmou o diretor de Emergências da OMS, Michael Ryan.
O diretor Marcos Espinal, do Departamento de Doenças Comunicáveis da Opas, que é braço da OMS nas Américas, já reforçara em 19 de maio que “não há evidências para recomendar cloroquina e hidroxicloroquina contra a Covid-19″.
Mas os cultuadores da droga abençoada triunfam nas redes sociais brasileiras com a cumplicidade do presidente, que criou um clima de hostilidade diante do desprezo aberto da ciência quando suas conclusões contradizem seus desejos ou discurso.
Em março, um consórcio de pesquisadores da Fundação de Medicina Tropical analisou a letalidade e toxicidade de diferentes doses de cloroquina em pacientes com Covid-19 em Manaus. “Nosso estudo levanta bandeiras vermelhas suficientes para que se pare de usar altas doses de cloroquina porque os efeitos tóxicos superam os benefícios”, escreveu o cientista brasileiro Marcus Lacerda em seu artigo no ‘Journal of American Medical’ Association (Jama).
O ensaio foi suspenso antes do previsto porque 11 dos pacientes morreram. Mas a pesquisa, com suas conclusões, tornou-se um gatilho para ataques —incluindo ameaças de morte— contra os pesquisadores. “O linchamento começou assim que os resultados foram publicados”, explicou Lacerda ao jornal ‘El País’. “A primeira frustração foi saber que a cloroquina não funcionava; a segunda, descobrir que as pessoas interpretavam o julgamento como um ataque a Bolsonaro.”
As conclusões da equipe de Manaus foram valiosas para milhares de médicos que tratam pacientes com coronavírus. Mas para o bolsonarismo, aquilo soou como um boicote. “Comecei a receber ameaças de morte, me diziam que eu ia perder meus filhos, que iria acabar como Marielle Franco (a vereadora assassinada em 2018 no Rio de Janeiro)”, lembra Lacerda, em Manaus, que na época registrava um dos surtos mais graves no Brasil.
Muitas ameaças eram anônimas, mas um tuíte do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, os colocou como alvo de milhões de internautas. “Um estudo clínico realizado em Manaus para desqualificar a cloroquina causou 11 MORTES após os pacientes receberem doses bem acima do padrão”, tuitou o filho de Bolsonaro, ressaltando o dado com letras maísculas. Lacerda teve que ser escoltado.