Crédito não chega a micro e pequenas empresas

Governo sanciona com vetos lei que prevê uma linha de financiamento de R$ 15,9 bilhões, mas empreendedores temem que acesso ao dinheiro esbarre nas mesmas dificuldades que já encontram em outras modalidades de empréstimo  

A lei que concede uma linha de crédito de R$ 15,9 bilhões para pequenas e microempresas durante a pandemia de coronavírus finalmente foi sancionada, após a aprovação em abril pelo Congresso Nacional. Publicada na edição de terça-feira (19) do Diário Oficial da União, a Lei 13.999 sofreu quatro vetos do presidente Jair Bolsonaro.

O Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe) prevê uma linha de crédito até o limite de 30% da receita bruta obtida em 2019. Está assegurada taxa de juros anual máxima igual à Selic mais 1,25% sobre o valor concedido, com prazo de 36 meses. Mas a carência de oito meses, período em que as parcelas seriam reajustadas apenas pela taxa Selic, foi barrada pelo governo.

Bolsonaro vetou ainda um capítulo inteiro que previa a prorrogação do parcelamento de dívidas com a Secretaria da Receita Federal e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. O projeto aprovado pelo Congresso estendia os prazos para pagamento das parcelas por 180 dias e estabelecia um regime especial para a liquidação dos débitos.

O contribuinte poderia optar por quitar o valor em parcela única, corrigida apenas pela Selic, ou em até 24 prestações corrigidas pela Selic mais 1% ao ano. Para o Palácio do Planalto, alterar prazos e alíquotas para o pagamento das parcelas “acaba por acarretar renúncia de receita, sem o cancelamento de outra despesa obrigatória e sem que esteja acompanhada de estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”.

Bolsonaro vetou ainda a previsão de que informações sobre as empresas optantes pelo Simples Nacional fossem encaminhadas da Receita Federal para o Banco Central. De acordo com o presidente, a proposta “gera insegurança jurídica por indeterminação de quais seriam essas informações objeto de compartilhamento, podendo gerar equívocos operacionais no curso da execução do programa”.

Um último dispositivo vetado proibia os bancos de negarem a contratação dos empréstimos com base em anotações em serviços de restrição de crédito. Para o Palácio do Planalto, o dispositivo poderia abrir uma brecha para que os bancos direcionassem parte do dinheiro do Pronampe para a liquidação de prejuízo em suas próprias carteiras. Isso porque, segundo o Palácio do Planalto, eles não estariam obrigados a “observar as restrições de crédito dos clientes em seus próprios cadastros”.

Dinheiro emperrado

A questão entre os empreendedores é se conseguirão ter acesso aos créditos do Pronampe. Uma linha de crédito de R$ 40 bilhões anunciada pelo governo em 27 de março para bancar salários, por exemplo, continua indisponível para milhares de pequenas e médias empresas no país.

Isso porque a Medida Provisória 944, que a criou, proíbe a concessão do empréstimo a empresas que não possuem folha de pagamento processada em um banco. Mas isso é o que ocorre com milhares de pequenos e médios estabelecimentos comerciais espalhados pelo país.

O resultado do descolamento da realidade é que, até agora, apenas 4% do total (R$ 1,6 bilhão) foram liberados. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) calcula que o dinheiro serviu para pagar os salários de um milhão de trabalhadores, mas muito mais ficaram sem assistência.

Apenas no Distrito Federal, a Câmara dos Dirigentes Lojistas (CDL) estima que 95% das empresas enfrentam dificuldades para acessar a linha. “O governo fala que existe a linha, mas muita gente não consegue acessar, porque os bancos precisam que a folha seja paga dentro do sistema”, explica José Carlos Magalhães Pinto, presidente da CDL-DF, que reúne mais de quatro mil associados.

No início de abril, o Banco Central (BC) estimou que a linha permitiria a manutenção da renda de 12 milhões de trabalhadores de pequenas e médias empresas durante a pandemia. Um mês depois, em 4 de maio, o próprio BC registrava que apenas 304 mil trabalhadores haviam sido contemplados, em um total de 19,3 mil empresas.

Desde 16 de março, o governo já anunciou cinco programas para ajudar pequenos negócios durante a pandemia. Segundo o último balanço do BNDES, o crédito aprovado até o momento em todas as ações emergenciais voltadas soma apenas R$ 13 bilhões, de um orçamento de R$ 77 bilhões. O Ministério da Economia afirma que 77 mil empresas conseguiram aprovação dos bancos para terem acesso ao crédito.

Crédito difícil

O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) afirma que o Brasil tem 17 milhões de pequenos negócios. Desses, quase sete milhões (38%) procuraram crédito no período. Mais da metade (58%) não conseguiu o dinheiro, e 28% ainda estão aguardando a liberação do banco. Pesquisa da agência, divulgada nesta segunda (18), mostra que, desde o início das medidas de isolamento, apenas 14% das micro e pequenas empresas que solicitaram crédito o conseguiram.

“Os pequenos comércios, da padaria à quitanda, isso tudo faz parte do nosso cotidiano e sem eles nós vamos ficar imperfeitos. Nós precisamos preservá-los para que, na verdade, o Brasil saia com menos desgaste do que poderia sair dessa pandemia”, avalia Carlos Melles, presidente do Sebrae.

Paulo Gala, diretor-geral da Fator Administração de Recursos e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), afirma que falta uma atuação mais forte do BNDES no socorro aos pequenos e microempreendedores. “Acho que está muito tímido ainda o que o governo tem feito em relação à pandemia. Ao meu ver, o BNDES está completamente parado, e é uma ferramenta poderosíssima que poderia ser usada. Eles anunciaram algumas medidas, mas ainda é muito pouco perto do poder de fogo do orçamento do BNDES”.

Para o economista Sérgio Lazzarini, professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), falta gerenciamento ao governo. “Tem que ser uma resposta rápida e coordenada, principalmente. Está faltando esse tipo de organização nessas políticas públicas, inclusive nas políticas públicas de apoio ao empreendedor. Porque nós não temos uma política unificada, geral, para combater a pandemia e isso gera incertezas. Esse tipo de atrito, de falta de coordenação, é fatal para o empreendedor”, comentou com o portal ‘The Intercept’.

Liquidez para os bancos

A MP 944 entrou em vigor em 3 de abril e precisa passar pelo Congresso para virar lei. Na mesma época, o ministro da Economia, Paulo Guedes, admitia que os recursos do governo federal estavam “empoçados no sistema financeiro”. A fala ocorreu duas semanas depois de o BC anunciar R$ 1,2 trilhão para aumentar a liquidez dos bancos.

O economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social, explica que, historicamente, o crédito para a pequena empresa no Brasil é raro, de curto prazo, caro e mais voltado para consumo do que para o investimento, além de ser geralmente mais concedido por entes públicos do que pela iniciativa privada.

“São todos elementos que denotam uma certa baixa qualidade do crédito”, afirma. “Só que, agora, não é uma questão de qualidade, é uma questão de quantidade”, diz Neri, para quem é primordial conceder crédito em larga escala, inclusive a inadimplentes. “A gente está numa situação em que é necessário gerar essa injeção para manter as rodas da economia se movimentando e não quebrar os pequenos negócios”.

Carlos Honorato, consultor econômico e professor da Fundação Instituto Administração (FIA) e Saint Paul, disse ao portal ‘G1’ que as ações do governo são “medíocres” diante do que o país precisa. “O governo ainda vive ainda uma dificuldade ideológica e não entendeu a gravidade da pandemia e do papel do estado numa situação como essa.”

Segundo ele, “já tem dois, três meses que o crédito não chega às micro e pequenas empresas, porque basicamente não há garantia para o banco emprestar esse dinheiro. Não adianta abrir uma linha de crédito se o risco fica na mão do banco. O banco não vai emprestar esse dinheiro”.

Incapacidade administrativa

Honorato reclamou tanto da demora no pagamento do auxílio emergencial quanto da ajuda para as empresas. “Muitas empresas e pessoas vão morrer, mas não é por causa do fechamento da economia, nem do lockdown. É pela absoluta incapacidade de execução de medidas tanto de saúde como de crédito “, diz o economista.

Um levantamento do Instituto Locomotiva apontou que 88% dos empreendedores registraram queda nas vendas durante o período da pandemia. Além disso, 62% dos entrevistados apontaram diminuição da renda pessoal, e 58% têm contas em atraso. A pesquisa ouviu 750 empreendedores e 2 mil pessoas entre 2 e 6 de maio.

Diretor do instituto, Renato Meirelles diz que não é o isolamento social que causa a crise econômica, mas a pandemia. “Existe um falso dilema entre solução econômica versus solução de saúde. Fazer o dinheiro chegar na ponta é o que pode ajudar no combate à crise econômica”, diz o diretor do Instituto Locomotiva.

Tópicos:

LEIA TAMBÉM:

Mais notícias

PT Cast