Dilma: “Eles começaram a desmontar o Estado de Bem-Estar Social mínimo que existia no Brasil depois da Constituição de 88”

Em entrevista a Mino Carta, a ex-presidenta reconhece erros cometidos pelos PT – “focamos na gestão e não capturamos corações e mentes” –, diz que a desigualdade vai se aprofundar e que a luta agora é para tirar Bolsonaro, que continua na Presidência porque as elites apoiam a agenda neoliberal de Guedes

Em entrevista ao jornalista Mino Carta, fundador de Carta Capital, a ex-presidenta Dilma Rousseff faz um balanço da crise política na qual o país está mergulhado desde 2013, quando eclodiram as manifestações de rua que crisparam a opinião pública e abriram espaço para uma eleição dura de sua reeleição, seguida da sabotagem em 2015 até desembocar no impeachment em 2016.

“Eles começaram a desmontar o Estado de Bem-Estar Social mínimo que existia no Brasil depois da Constituição de 88, acabaram com o mínimo de investimento em saúde e educação, e começaram a destruir a rede de proteção social, porque é isso que está na origem da guerra ao PT”, aponta.

Dilma avalia que o país está diante de sua maior crise – política e econômica – agravada pela pandemia. E que a responsabilidade é das elites dirigentes do país estão com Bolsonaro porque ainda não têm um substituto e apoiam a agenda econômica de Paulo Guedes. “A ideia de que a questão social é também racial e uma questão estrutural. A visão excludente da elite, que explica como e por que eles são capazes de repetir sempre a mesma história. (…) Agora, na pandemia, eles vão engolir o Bolsonaro pelo tempo que for necessário, caso ele mantenha a agenda neoliberal que lhes interessa”.

A seguir, os principais trechos da entrevista à ‘Carta Capital’.

O COMEÇO DO GOLPE

As manifestações de 2013, quando, de repente, uma manifestação que começa pedindo que não se reajustem as tarifas de ônibus, pleito eminentemente municipal, se transforma, por obra da Globo também, num movimento pela adoção do “padrão Fifa”. Também de forma surpreendente surgem os dez pontos da pauta anticorrupção do Dallagnol. (…)

Ali não estava excluída a possibilidade de um golpe. E isso vai num crescendo: a campanha eleitoral inteira de 2014 é um processo extremamente forte nessa direção. Eu me lembro que, ainda no final da campanha do primeiro turno, aparece aquela capa da Veja com dois perfis, metade do meu, metade do perfil do Lula: “Eles sabiam”, dizia a chamada. Não se dizia o que nós sabíamos, mas há de se convir que “eles sabiam” é algo extremamente terrorista. (…) Mas na sequên­cia do “eles sabiam” você tem a eleição.

Há algo inusitado que não acontecia no Brasil nos últimos anos, que é o pedido de recontagem dos votos. Nós percebemos que um segmento do PSDB pretendia um ganho fácil do processo eleitoral. E também um pedido para não haver diplomação. (…)

Isso no início de dezembro, e eu tinha sido eleita em novembro, e o Eduardo Cunha é líder do PMDB. Ele anuncia que ele será candidato à presidência da Câmara e, em fevereiro, na rea­bertura da sessão legislativa, nós perdemos. Ele é eleito.

O PT NO PODER

Os nossos governos, o meu e o do Lula, onde nós erramos substantivamente, temos vários erros, mas quero falar do erro central, eu acho que é justamente o seguinte: nós optamos por fazer a gestão em lugar de capturar as mentes e os corações. (…)

Fizemos ainda, durante meu primeiro mandato, uma pesquisa para averiguar qual foi o ganho principal do cidadão em função das políticas do governo petista. Cada qual dava uma resposta: melhores salários ou o filho na universidade. A pergunta seguinte era: você deve isso a quem? Ele respondia que, primeiro, a Deus, a ela ou ele próprio, depois à família, depois ao amigo e, por último, ao governo.

Na Argentina, Cristina Kirchner fez uma pesquisa parecida e o fundamental é que não tinha primeiro Deus, que vinha mais atrás, mas tudo isso mostra um processo em que houve uma discrepância entre a realização e o tratamento político dessa realização. (…) Nós optamos por uma tecnologia que está na origem do problema, sem deixar as nossas impressões digitais. O mesmo critério para a política de cotas, o Mais Médicos, Minha Casa Minha Vida.

Mas refiro-me ao tratamento político da questão, concentrada na luta pela igualdade, e é consolidar a consciência de que ainda se tem muito a conquistar. (…)

Outra incógnita diz respeito ao tempo à disposição: em 13, 14 anos, você consegue dar este salto? Creio ser no escuro, haver uma estrutura anterior com maior enraizamento, fruto das lutas sociais. (…)

E há outro engano, ah, sim, tem isso também, a ideia de que a conciliação é possível a partir da convicção de que quando se ganha economicamente também se ganha politicamente.

O PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO

Comigo, todas as contradições do presidencialismo de coalizão emergiram. Em que aspecto? Nas características mais básicas do País, por exemplo, por que sempre o parlamentar, aliás, o voto parlamentar é mais conservador e o voto presidencialista está um pouquinho à frente?

Seja para o bem ou para o mal, estou pensando no Fernando Henrique Cardoso, ou seja, ele está um pouquinho à frente dos conservadores do Congresso, e não tem a sofisticação neoliberal. De certa forma, o Fernando Henrique e a base de sustentação do PSDB são mais hard do que o Congresso que o sustentava, tanto o PFL quanto as demais forças.

Mas o que eu quero dizer é que você também tem um problema sério, que é a forma como foi feita a transição no Brasil, da ditadura para a democracia. Ou seja, o fato de dizerem até hoje que uma das responsabilidades pela adesão dos militares ao Bolsonaro foi a Comissão da Verdade é assustadoramente ingênua.

CASA-GRANDE E SENZALA

A ideia de que a questão social no Brasil é racial é também uma visão da elite. A visão excludente da elite, que explica como e por que eles são capazes de repetir sempre a mesma história. (…) Agora, na pandemia, eles vão engolir o Bolsonaro pelo tempo que for necessário, caso ele mantenha a agenda neoliberal que lhes interessa.

Mas ela é muito atrasada, sabe por quê? Eu estava vendo outro dia no ‘Financial Times’, você não vai falar que o ‘Financial Times’ é um antro de bolivarianismo, uma análise do responsável pela pauta econômica internacional e nacional, que é Martin Wolf, que passou seus últimos dois ou três meses, defendendo que não é possível sair desta pandemia, como se deu em 2008, com austeridade.

Ou se tem uma política de gastos e, mais, aí é que entra a pauta interessante, porque eles já se reciclaram, tem de tributar ganhos de capital, grandes fortunas, heranças, o setor digital e o setor financeiro. Por quê? Porque não tem mágica.

Aqui eles ainda estão tentando, o Paulo Guedes está querendo privatizar três empresas estatais. No mínimo, ele quer uma política de austeridade na contracorrente de tudo que o mundo está fazendo. Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu, diz: “Nós vamos viver um momento em que todos os países sairão endividados. Não temos de ter preocupação com este fato, porque vamos enfrentar uma deflação”. Então veja que, no Brasil, a coisa mais típica é escutar a GloboNews e eles falando em investidor estrangeiro.

O BRASIL E O TIO SAM 

Houve quem afirmava que Lula e eu tínhamos a responsabilidade por não conter o FBI. Bom, nós não sabíamos que o FBI andava solto por aí. Quando soube que estava sendo gravada pela NSA, a Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, tomei todas as providências cabíveis. Era vice-presidente o senhor Joe Biden, atual candidato do Partido Democrata a presidente.

Fizemos a primeira reclamação não presidencial, porque a ele cabia responder, e depois eu estive com o presidente Barack Obama, e tinha programada uma visita minha aos Estados Unidos. Disse ao presidente estadunidense que uma presidenta vigiada não poderia ir visitar aqueles que a vigiavam. (…) Eu quero que me digam o que já foi grampeado, que me digam que não vão grampear. O que foi grampeado não conseguiam dizer. E que não iam grampear mais foi aquela discussão ultraprotocolar que, no final, eles não tinham como voltar atrás. (…) Também Angela Merkel foi grampeada na ocasião e ambas recorremos à ONU. (…)

E a Lava Jato? Na Lava Jato eles burlam todo o controle e vão fazer a relação indevida com o Departamento de Justiça americano. Porque é público e notório que existem várias formas pelas quais os Estados Unidos agem no resto do mundo para impor seu poder. Uma delas é a guerra. Depois têm as bases militares. Terceiro, tem a utilização de leis domésticas norte-americanas impostas para terceiros países. Exemplo são os casos relativos aos bloqueios que eles fazem sistematicamente.

Quando eles querem obrigar países e empresas a aceitar o não fornecimento de equipamento, e num caso específico dessa forma, que é a forma Lava Jato, acho que ela faz parte daquele processo que tem a ver não só com os nossos golpes, os chamados golpes latino-americanos, mas tem a ver também com a Primavera Árabe.

Aliás, um aiatolá disse uma coisa interessante: de fato há uma Primavera Árabe que se transformará num verão muçulmano, e foi isso que se viu, um verão muçulmano bem quente.

O PRECARIADO

O Brasil entrou na idade do precariado de forma abrupta e violenta, via essa reforma, que torna servos os trabalhadores sem direitos e, como diz Ricardo Antunes, que transforma o trabalho num mundo de captura que não é igual à escravidão, mas é o domínio amplo do tempo de trabalho. O cara trabalha 12 horas para ganhar 900 reais.

Eles começaram a desmontar o Estado de Bem-Estar Social mínimo que existia no Brasil depois da Constituição de 88, acabaram com o mínimo de investimento em saúde e educação, e começaram a destruir a rede de proteção social, porque é isso que está na origem da guerra ao PT.

CHEGA BOLSONARO

Eles confiam que se tornou impossível ganhar em 2018 porque não tem candidato, e apostam que Bolsonaro seria moderado assim que subisse ao poder, mas o Bolsonaro não tem chip da moderação, ele não é moderável, isso nós vamos ver daqui para a frente. Naquele momento sofremos a maior derrota, na medida em que Bolsonaro assume em 2019, Lula é impedido e nós sofremos uma derrota política ali, mas não tirou a nossa capacidade de luta. É óbvio que não vai levar dois meses, é óbvio que não vai ser no curto prazo, mas os instrumentos nós os mantivemos, e não acredito que não teremos problemas seriíssimos de legitimidade política pós-Covid.

A Covid-19 é um genocídio por vários aspectos, é genocídio na saúde, é desestruturação integral da cadeia produtiva no mundo todo, mas aqui é muito mais, é perda violenta de empregos. (…) O maior problema que o senhor Bolsonaro não mediu é o colapso social. Ou ele mantém os 600 reais ou nós vamos ter uma revolta social de grandes proporções. Não há como sair da Covid-19 sem uma política de gastos claro na área da saúde, sem uma política de gastos na economia e no social. (…) Outra coisa estarrecedora é eles dizerem que não pode, por conta da Covid-19, tirar o Bolsonaro. Ora, quem impede o País de resistir? De fato, unificar o País e gerir essa crise tem nome: o Bolsonaro e a política dele. As forças que compõem e sustentam o governo dele produzem isso. (…) Eles não têm um nome alternativo a Bolsonaro, não acho que o Mourão seria.

AS “CORPORAÇÕES”

Elas surgiram no bojo da Constituinte de 88. Nós do PT votamos na forma pela qual o Ministério Público indicou como seria gerido. Nós defendemos a autonomia e podemos ter errado porque não estava na lei escolher numa lista tríplice indicada pelo próprio Ministério Público, o que redundava em um jogo corporativo muito forte. (…) A consagração do engavetador-geral da República.

Hoje eu acredito que talvez fosse melhor a gente manter um processo de pesos e contrapesos e não deixar que a Procuradoria acumulasse esse poder de escolher a si mesma, mas você também não resolve isso.

Nenhum governo é capaz de transformar uma corporação em 13 anos, tem de haver um processo de formação dessa corporação, tem de ter todo um teste dela. O mesmo raciocínio vale em relação à Polícia Federal, é a mesma coisa.

APARECE MORO

Quando Sérgio Moro diz que teve uma luta de ringue contra o presidente Lula, ele mente. O presidente Lula estava preso e tinha de ser tratado de forma neutra pelo juiz. Ao perseguir Lula, Sérgio Moro destruiu a base fundamental da Justiça, que é a neutralidade, com o aval do Supremo Tribunal Federal, porque o STF tem autoridade para controlar o juiz de primeira instância com uma mão nas costas. Podia enquadrar.

Mas repare no que aconteceu comigo quando convidei o presidente Lula para integrar o meu governo. Ele tem dúvidas, passa um tempo tendo dúvidas, porque ele não sabia se ia porque o lance tinha seus riscos e dona Marisa já estava doente.

Eu ligo para o Lula. Há uma dúvida: eu estava sendo grampeada? Parece que não, pelo menos é a avaliação dos técnicos da PF. De fato, gravaram Lula além da hora e Moro pegou e divulgou. Isso era um escândalo.

O máximo que ele levou foi uma leve admoestação, mas tem mais. Os dados sobre Eduardo Cunha foram entregues para ele assinar no Supremo em dezembro. Desde dezembro eles sabiam quem era Eduardo Cunha. Eu acho que há um órgão que vai ter de ser chamado às falas, chama-se Ministério Público. Tem de explicar o que aconteceu.

Da Redação, com Carta Capital.

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