Governo ameaça cortar verbas de saúde e educação para favorecer ‘armas’

Enquanto o setor ganha cada vez mais recursos, o braço forte dos cortes orçamentários atinge Saúde, Educação e gastos sociais. Guedes articula com Rodrigo Maia a votação de “gatilhos” que atingirão em cheio os servidores civis, que perderam reajustes. Já as Forças Armadas ganharam aumento salarial

Braço forte e mão amiga. O lema do Exército Brasileiro é o norte a conduzir a nau bolsonarista no momento de repartir os recursos públicos. Braço forte com a banda civil do governo e mão amiga com os fardados. A pouco menos de duas semanas para o fim de prazo de entrega do projeto de Orçamento da União para 2021, os sinais são de que o governo vai tirar da Saúde e da Educação para manter a generosidade fiscal com as Forças Armadas no próximo ano – assim como foi no anterior e neste.

Enquanto o orçamento do Ministério da Defesa passará dos atuais R$ 80,28 bilhões para R$ 108,56 bilhões em 2021, o orçamento do Ministério da Saúde deve cair para R$ 127,75 bilhões. Menos que o aprovado para o começo deste ano (R$ 134,7 bilhões) e que o limite atual de gastos da pasta (R$ 174,84 bilhões), valor definido após a liberação de créditos extraordinários para o enfrentamento da crise do coronavírus.

Se a proposta for confirmada, o orçamento da Saúde para 2021 pode ser R$ 7 bilhões menor do que o previsto inicialmente pelo governo para este ano, antes da pandemia, ou R$ 47 bilhões inferior ao limite de gastos alcançado durante a pandemia.

Para a assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Luiza Pinheiro, “é como se o governo achasse que a Covid-19 vai simplesmente sumir no dia 31 de dezembro de 2020”. Em entrevista ao jornal ‘O Estado de São Paulo’, Luiza aponta que o governo desconsidera que parte da estrutura criada para atender a pandemia deve ser preservada, como leitos e respiradores.

“Além disso, ignora os serviços que não foram prestados em 2020 por conta da pandemia (como cirurgias eletivas) e o aumento da demanda do SUS devido ao alto desemprego, que faz com que as pessoas percam seus planos de saúde, e da sua família”, prossegue a pesquisadora.

Da verba prevista para a Saúde ano que vem, R$ 110,14 bilhões seriam gastos obrigatórios, como a folha de pagamento de servidores. Outros R$ 16,47 bilhões são valores discricionários, que podem ser remanejados, como a contratação de serviços e investimentos. É metade dos recursos destinados à pasta no começo do ano e um quarto do autorizado até agora para o combate à Covid-19.

No mesmo jornal, Francisco Funcia, consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde (CNS), estima que, para se cumprir o piso constitucional para a Saúde, será preciso acrescentar R$ 10 bilhões de recursos de emendas parlamentares. “É um duplo retrocesso. Não só reduz o orçamento atual, como ainda condiciona a uma fatia grande de emendas”, afirmou.

Para a Educação, o orçamento cairá de R$ 103,1 bilhões para R$ 102,9 bilhões. O governo também pretende fazer um corte de 18% nas despesas discricionárias em todos os níveis em 2021, o que deverá neutralizar o avanço obtido com o Novo Fundo de Desenvolvimento e Valorização dos Profissionais de Educação (Fundeb), que pode ser votado esta semana no Senado.

Do total de R$ 4,2 bilhões que se pretende cortar em despesas discricionárias, R$ 1 bilhão deve ser retirado das universidades federais. Os R$ 3,2 bilhões restantes serão distribuído nas redes de educação básica – ensino infantil, fundamental e médio. Semelhante ao valor estimado do acréscimo ao novo Fundeb em 2021: R$ 3 bilhões.

“Tudo indica que essa medida visa a compensar os gastos extras que a União terá com o novo Fundeb. No frigir dos ovos, tudo poderá continuar como está, ou até pior”, avaliou Rosilene Corrêa, diretora da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), para a ‘Rede Brasil Atual’.

Generoso desde a posse

No primeiro ano de governo, o Ministério da Defesa foi privilegiado com o maior reforço de orçamento da Esplanada. A pasta encerrou 2019 gastando R$ 6,3 bilhões a mais do que o previsto e chegou a R$ 109,9 bilhões, segundo o Siga Brasil, sistema de acompanhamento de receitas e despesas federais do Senado. O valor é 10,9% maior do que em 2018 e provavelmente um dos maiores da história em termos nominais —a base do Siga Brasil só tem dados comparáveis até 2001.

No fim de 2019, Bolsonaro proibiu que o orçamento para a Defesa fosse contingenciado este ano. Antes das decisões tomadas ao apagar das luzes, Bolsonaro já havia conferido grandes vantagens às Forças Armadas durante as discussões sobre a reforma da Previdência. Draconiano com os civis, cobrou dos militares apenas R$ 1 bilhão por ano como economia previdenciária, além de conceder-lhes amplo aumento salarial.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, aceitou que os militares ficassem de fora da reforma da Previdência. Um projeto de reforma específico foi enviado depois, com aumento de despesas por causa da reestruturação das carreiras, o que consumiu boa parte da economia com o aumento da contribuição para a aposentadoria.

O aumento de até 73% na bonificação salarial concedida aos militares que fazem cursos ao longo da carreira custará R$ 26,54 bilhões em cincos anos. O reajuste do “adicional de habilitação” foi incorporado na folha de pagamento de julho, com impacto de R$ 1,3 bilhão neste ano. Segundo informações dos Ministérios da Economia e da Defesa obtidas pelo ‘Estadão’, o gasto anual com o pagamento da bonificação crescerá ano a ano, e em 2024 já estará em R$ 8,14 bilhões.

O reajuste do adicional foi aprovado com a reforma da Previdência dos militares. O benefício foi criado na gestão de Fernando Henrique Cardoso e o valor era o mesmo desde 2001. No ano passado, Bolsonaro autorizou o reajuste para até 73% sobre o soldo, em quatro etapas. O aumento vale para militares da ativa e da reserva, que pressionaram para receber. O dinheiro foi preservado em reserva específica do Orçamento da União.

Além de elevar a despesa por causa desse adicional, o governo já tinha gasto R$ 441 milhões a mais por causa das mudanças na reforma dos militares. O motivo apontado foi de que dobrou a ajuda de custo na passagem do militar para a inatividade. Projetada para atingir um total de R$ 300 milhões este ano, já chegou a R$ 441 milhões.

Por coerência, o reajuste deveria ter sido suspenso até dezembro de 2021, junto com o congelamento dos salários dos servidores civis, aprovado pelo Congresso com o socorro de R$ 120 bilhões a estados e municípios. A ideia do congelamento – uma contrapartida do setor público aos cortes salariais no setor privado – foi de Paulo Guedes.

Outros 12 milhões de trabalhadores da iniciativa privada foram atingidos durante a pandemia com tesourada nos salários e suspensão de contratos. Os ministros militares, porém, trataram de negociar com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), a “blindagem” necessária para seu reajuste.

Um outro bônus criado por Bolsonaro, o de disponibilidade militar, tem impacto previsto de R$ 2,7 bilhões por ano. Esse agrado não existia antes e engorda o salário em até 41%. A mesma lei que reajustou o “adicional de habilitação” abriu ainda a possibilidade de contratação de militares inativos por outros órgãos da administração pública, com um adicional de 30% da remuneração na aposentadoria.

Oficiais das Forças Armadas comandam 10 dos 23 ministérios e são maioria no Palácio do Planalto, de onde atuam, nos bastidores, na articulação com o Legislativo e o Judiciário, além dos órgãos de controle.

Em julho, o site ‘Poder 360’ informou que há 8.450 militares da reserva fazendo parte do governo e ocupando cargos que, em grande parte, poderiam ser de servidores públicos concursados. Os militares são contratados pela modalidade “tarefa por tempo certo”, que pode durar até dez anos e gera bônus de 30% sobre os salários. Os números não incluem inativos recontratados em cargos de comissão (DAS). Outro levantamento, do portal UOL, aponta que o governo empregou 254 militares em cargos comissionados.

A reportagem identificou que pelo menos 300 dos militares da reserva estão em ministérios exclusivamente civis, o que levanta questionamentos do Tribunal de Contas da União (TCU). Entrevistado na matéria, um integrante do TCU contestou a necessidade do deslocamento: “A tese de desvio de função pode ser desenvolvida sem muita dificuldade, a partir do detalhamento das tarefas. E mais, esse pessoal todo não faz falta nas Forças Armadas? Se não faz, o que esses militares faziam antes?”, questionou.

Há ainda 129 militares cedidos à Imbel, a fábrica de armamentos do governo, o que foi considerado irregular pelo Ministério Público, que apresentou denúncia. A empresa conseguiu na 7ª Vara da Justiça do Trabalho que o processo tramite em segredo de Justiça. Conforme o ‘Poder 360’, “o ato deixou os técnicos do MP surpresos, dado o baixo potencial da denúncia, que envolve simples disputa trabalhista”.

Austeridade seletiva sem pudores

Na live da última quinta (13), Bolsonaro não teve o menor pudor em dizer que a pressão para aumentar os recursos do Orçamento destinado aos militares será satisfeita com a retirada de outras áreas, como a Educação. “Alguns chegam: ‘Pô, você é militar e esse ministério aí vai ser tratado dessa maneira?’ Aí tem de explicar. Para aumentar para o Fernando (Azevedo e Silva, ministro da Defesa) tem de tirar de outro lugar”, confessou.

Já Guedes sabe ser generoso quando – e com quem – quer. O Projeto de Lei do Orçamento de 2020, o primeiro elaborado integralmente por ele, chegou a R$ 3,8 trilhões, dos quais R$ 1,9 trilhão era referente a amortizações, juros, refinanciamentos e encargos financeiros da dívida pública para os amigos rentistas do ministro-banqueiro. A mordida de 50,7% do total do Orçamento foi o maior volume já gasto na história do país em manutenção anual da dívida pública.

Mas para o próximo ano, Guedes já se articulou com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o líder do PP, Arthur Lira (AL), dos principais nomes do Centrão, a aceleração da votação da proposta que permitirá ao governo acionar em 2021 medidas de contenção dos gastos, além de criar novos freios para as contas públicas, os chamados “gatilhos” – novamente, apenas para os outros.

Entre as medidas que poderão ser adotadas estão a proibição de criação de despesas obrigatórias (como salários e o pagamento de benefícios da Previdência), criação de novos cargos, alteração de estrutura de carreira do funcionalismo, admissão ou contratação de pessoal, concessão ou ampliação de qualquer benefício tributário (como isenções dadas a empresas e famílias) e corte de renúncias em impostos.

Também estão previstas ações como a como revisão do pagamento do abono salarial (benefício de até um salário mínimo pago a quem ganha no máximo dois salários mínimos), do seguro-desemprego e maior foco em programas, além de cortes em renúncias fiscais.

Enquanto a disputa pelo que resta do Orçamento da União se aprofunda, o governo federal empregou apenas R$ 294 bilhões em medidas de combate à pandemia do coronavírus, o que é pouco mais da metade do disponível no chamado “orçamento de guerra” aprovado pelo Congresso: R$ 512 bilhões.

O TCU questionou a estratégia do governo na utilização do dinheiro. Além de não usar todo o orçamento disponível, o TCU identificou lentidão na liberação da verba e pediu explicações ao Ministério da Saúde, que tem até o fim de agosto para responder.

Para o economista Marcos Mendes, professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), o problema é que que não há eficiência nesses gastos. “Apesar de gastar um volume elevado, a gente está gastando, possivelmente, de forma não eficiente. Porque faltou coordenação, faltou organização, faltou prioridades. Há muito conflito entre o governo federal e o governo estadual”.

Da Redação

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