Servilismo e incompetência do governo põem em risco acesso à vacina contra Covid-19
Segundo o acordo de quase R$ 2 bilhões com farmacêutica britânica, o Brasil terá que pagar royalties, não possuirá patente nem poderá exportar o produto, e também não será reembolsado se a eficácia do medicamento não se comprovar. Enquanto isso, Pazuello protela acerto com laboratório chinês
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A subserviência aos interesses dos Estados Unidos pode fazer o Brasil ficar atrás na fila dos países que receberão a primeira vacina eficaz contra a Covid-19. Enquanto o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, ávido para bajular o presidente Jair Bolsonaro, protela uma decisão sobre a compra da Coronavac, a promissora vacina chinesa, o jornal inglês ‘Financial Times” teve acesso ao Memorando de Entendimento assinado em 31 de julho entre a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) e a companhia farmacêutica britânica AstraZeneca, que é amplamente desfavorável ao Brasil.
A reportagem revela que a AstraZeneca impôs uma série de condições para a produção de uma eventual vacina contra a Covid-19 no país. O Ministério da Saúde prevê um repasse de R$ 522,1 milhões para a reforma da estrutura de Bio-Manguinhos, unidade da Fiocruz produtora de imunobiológicos. E R$ 1,3 bilhão cobrirá despesas referentes a pagamentos previstos no contrato de Encomenda Tecnológica. Os valores contemplam a finalização da vacina.
O jornalista Jamil Chade, do portal ‘Uol’, também teve acesso a trechos do memorando. Segundo ele, fica claramente estabelecido no documento que a produção realizada pela Fiocruz só poderia atender ao mercado doméstico brasileiro, sem a possibilidade de uma eventual exportação dos produtos.
Além disso, o memorando prevê que toda a propriedade intelectual do imunizante permanecerá com a farmacêutica britânica, e que um acordo ainda estabeleceria o pagamento de royalties. O documento também determina que se a vacina não der resultados, não haverá reembolso.
Segundo a reportagem do ‘Financial Times’, apesar de a AstraZeneca ter prometido não lucrar com o possível imunizante “durante a pandemia”, ela tem o direito de determinar uma data final para o surto. O acordo para a produção de pelo menos 100 milhões de doses da vacina define que o “Período de Pandemia” acabaria em 1º de julho de 2021 e poderia ser estendido apenas se a empresa, “agindo de boa-fé, considerar que a pandemia de SARS-COV-2 não acabou”.
Com base em declarações anteriores de Pascal Soriot, diretor-executivo da AstraZeneca, vários fatores poderiam influenciar na decisão da companhia para determinar quando seria o fim da pandemia. Essa postura tem reflexos no preço, pois muitas companhias alegam que o fornecimento de doses a preço de custo só seria possível enquanto a pandemia durar, e que os valores terão de ser renegociados depois.
O custo futuro de uma eventual vacina é uma questão controversa, já que diversas farmacêuticas, entre elas a AstraZeneca, receberam milhões de dólares de recursos públicos em incentivos para acelerar o seu desenvolvimento. Algumas companhias disseram que só poderiam produzir uma vacina se obtivessem lucro com a mesma, enquanto outras, como a AstraZeneca e a Johnson & Johnson, aceitaram fornecer doses a preço de custo enquanto a pandemia durar.
O ‘Financial Times’ questionou a AstraZeneca a respeito de sua definição de “Período Pandêmico” e sobre o acordo com a Fiocruz, mas empresa não quis comentar.
“Desde o início, a abordagem da AstraZeneca tem sido tratar o desenvolvimento da vacina como uma resposta a uma emergência global de saúde pública, não uma oportunidade comercial. Continuamos a operar com esse espírito público e buscaremos orientação especializada, inclusive de organizações globais, para saber quando podemos dizer que a pandemia já passou”, disse a companhia em nota.
Vacina chinesa em banho maria
Enquanto cede às exigências da fabricante da chamada “vacina de Oxford”, a preferida de Bolsonaro, o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, protela decisão sobre a compra da única das 13 vacinas desenvolvidas por chineses que tem acordo para distribuição no Brasil: a CoronaVac, do laboratório Sinovac Biotech.
O ministro receberia nesta quinta o presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, para discutir o convênio com o laboratório chinês. Desde o início de agosto o instituto de São Paulo tenta negociar com o Ministério da Saúde um aporte de recursos para garantir a distribuição nacional da vacina chinesa por intermédio do Sistema Único de Saúde (SUS), como ocorre com outros imunizantes.
O governo de São Paulo pediu investimento de pelo menos R$ 1,9 bilhão do Ministério da Saúde para ampliar a previsão de entrega da Coronavac de 60 milhões para 120 milhões de doses. Na última sexta (2), foi encaminhado o estudo preliminar à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para agilizar o registro da vacina.
O medicamento está na terceira fase de testes no país, em nove mil profissionais da saúde. A expectativa é de que entre outubro e novembro as pesquisas sejam concluídas. Segundo Dimas Covas, o recurso pedido ao ministério bancaria o estudo clínico da Coronavac no Brasil, com R$ 85 milhões, e a reforma da fábrica, estimada em R$ 60 milhões. O restante, mais de R$ 1,8 bilhão, seria investido na compra da própria vacina.
Bolsonaro criticou a negociação do governo de São Paulo com a China. “O mais importante, diferente daquela outra (vacina) que um governador resolveu acertar com outro país, vem a tecnologia para nós”, disse o presidente em 6 de agosto.
Questionado sobre a resistência do presidente à vacina chinesa, o secretário de Saúde paulista, Jean Gorinchteyn, disse que o produto é “apolítico”. “Estamos tratando de medidas técnicas e com gestores técnicos. Dessa maneira que deve ser encarado”, afirmou. Dimas Covas destacou a eficácia do medicamento: “Não há motivos para descaracterizar ou desconsiderar uma vacina pelo fato dela ter sido desenvolvida inicialmente na China”.
O governo de São Paulo firmou termo de compromisso com a Sinovac de fornecimento de 46 milhões de doses ao estado até dezembro de 2020. O valor do contrato é de US$ 90 milhões. Nele, também há a formalização da transferência de tecnologia para a produção pelo Instituto Butantan.
Caso o desgoverno Bolsonaro não concretize um acordo, a distribuição nacional da vacina chinesa fica inviabilizada, e o Butantan terá que fazer negociações diretas com outros estados e até mesmo países. Seria, na visão de Dimas Covas, o “fim do SUS”, pois toda campanha de imunização é organizada pelo Ministério da Saúde.
Uma das alternativas em discussão é a formação de um pool de governadores que organize o acesso dos grupos vulneráveis de seus estados à vacina, nos moldes da Covax, iniciativa da Organização Mundial de Saúde (OMS) que congrega 165 países para garantir acesso igualitário às vacinas que eventualmente funcionarem. Assim, um volume maior do imunizante poderia ser adquirido.
Para o secretário de Saúde de São Paulo, a insistência na procura pelo governo federal é para que o Brasil não fique no final da fila, se a vacina tiver a eficácia comprovada. “Nada mais justo do que nós já termos um aceno robusto do ministério para a aquisição, para que possamos vacinar o maior número de brasileiros da forma mais rápida. Assim que os testes provarem a eficiência, não teremos só o disparo no preço do imunizante como, seguramente, teremos muitos interessados em adquiri-lo”, explicou o secretário.
Fake news conta a China e sumiço de testes
No submundo das redes sociais bolsonaristas, surgiu uma postagem distorcendo informações para sugerir que há algo errado com os imunizantes desenvolvidos por empresas chinesas. A premissa é de que que um laboratório chinês fechou acordo justamente com a AstraZeneca, para que o país receba 100 milhões de doses da vacina inglesa. O post questiona por que os chineses estariam em busca dessas vacinas enquanto vendem seus produtos para o Brasil.
O conteúdo desconsidera que a China já concedeu autorização especial para que as vacinas da Sinovac e da Sinopharm, desenvolvidas lá, sejam aplicadas na população considerada de alto risco. O material também não leva em conta que vários países têm buscado diversificar seus fornecedores de vacinas. Estados Unidos e Reino Unido, por exemplo, têm, cada um, acordos com seis diferentes fornecedores de vacinas.
A publicação também desconsidera que 12 das 13 vacinas desenvolvidas por empresas ou institutos de pesquisa chineses foram aplicadas primeiro em cidadãos da própria China, em suas fases 1 e 2 de testes. A Sinovac veio realizar a fase 3 do ensaio clínico na América do Sul porque, na época, o número de novos casos na China havia caído.
Em outra frente, Pazuello, que esta semana admitiu que sequer sabia o que era o SUS, também desconhece onde foram parar 38 mil testes enviados a órgãos públicos federais, de um total de 256,9 mil unidades doadas do material.
O Ministério da Saúde garante que 160 mil testes foram encaminhados para pesquisas, como a coordenada pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Outros 58,9 mil foram enviados aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis). Órgãos como a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), a Casa Civil, o Ministério da Defesa, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e a Anvisa também receberam lotes. Outras autarquias teriam recebido, mas o Ministério da Saúde não soube detalhar uso e quantidade. Falta saber a destinação de 15% da doação, ou 38 mil testes.
O Ministério da Saúde não sabe se o produto foi usado ou se está guardado. Em nota, a pasta classificou os repasses aos órgãos como “doações menores”. “Na apresentação do Localiza SUS, o Departamento de Logística em Saúde (DLOG) acumulou esses testes no grupo ‘órgãos federais’ porque eles não foram destinados às secretarias de Saúde de estados”, informa o texto.
Brasil perde chance de liderar, diz Celso Amorim
O colunista Jamil Chade também revelou que o desgoverno Bolsonaro optou por não se aliar a um projeto da Índia e África do Sul para pedir a suspensão de todas as patentes de vacinas, testes, tratamentos e qualquer outra tecnologia que sirva para frear a covid-19. Apresentada à Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2 de outubro, a proposta será discutida numa primeira reunião em Genebra (Suíça), no dia 15.
A meta é conseguir que, sem patentes, as inovações possam ser produzidas em diversas partes do mundo ao mesmo tempo, com custos mais baixos, e garantindo a distribuição às populações mais pobres. Ao suspender as patentes, abra-se a possibilidade de uma transferência de tecnologia. O governo brasileiro, porém, acredita que tal medida enfrenta vários obstáculos.
Segundo Chade, a percepção do governo é de que o momento é de fechar parcerias, e não enfrentar as empresas multinacionais, como ocorreu nos anos 1990 e início do século 21, diante da Aids.
Na disputa bilionária pelos insumos, segundo a organização Oxfam, os países ricos já reservaram ou compraram metade da produção prevista de vacina, enquanto outras entidades alertam que tratamentos hoje são restritos para apenas alguns locais do mundo.
A postura brasileira é lamentada por Celso Amorim, ex-chanceler brasileiro e diplomata que foi um dos artífices de um acordo na OMC para garantir a flexibilidade para as patentes de remédios. Segundo ele, a rigor, os tratados internacionais poderiam ser suficientes para garantir o acesso aos produtos para enfrentar a pandemia. “Mas, num momento tão dramático, é necessário que se explicite isso”, declarou.
Em sua avaliação, a atitude dos indianos e africanos é “um movimento político importante” para os países em desenvolvimento, num momento em que países ricos continuam a questionar qualquer tipo de flexibilidade na questão da proteção de patentes. “Mais que uma vergonha [a ausência do Brasil], é uma tristeza”, disse. “O Brasil liderava um movimento e, hoje, perde a chance de ser líder”, afirmou.