Somos potência e resistência

Artigo de Lorrayne Santos da Silva

Lorrayne Santos da Silva, publicado originalmente em cearacriolo.com.br

A quem é permitido reinventar-se durante a quarentena? Que semelhanças podemos encontrar nas frases: quarentene-se; covid-se; reinvente-se? São frases ditas por pessoas brancas; logo, privilegiadas.

Neste exato momento, um novo caso de coronavírus foi informado a alguma família e há crianças pretas sendo mortas dentro de suas casas pela política genocida do Estado brasileiro. Milhares de brasileiros não têm sequer saneamento básico e não possuem água potável para lavar as mãos e evitar, assim, que o vírus se espalhe no local onde moram. São, em vez de brasileiros, os despossuídos da Terra brasílis.

Se um dia a imagem do Brasil foi exclusivamente o samba + futebol + carnaval, essa fanfic tem se esfacelado com as inúmeras notícias em canais internacionais de que “o povo brasileiro não pega coronavírus, porque é um povo que toma banho de canal.”

Voltando ao fator reinventar-se: é neste mesmo país que dizem estarmos todos no mesmo barco e que “o vírus é democrático”. Do mesmo jeito que o grande teórico da democracia racial disse aqui não haver negritude, tampouco branquitude, “dois extremos sectários”. Somos todos essa linda e grande mistura gingada na capoeira. Ginga esta feita em meio a esgoto a céu aberto, cólera, fome e muita macumba (ebó), para que essa gente continue resistindo.

Vou dizer o que é reinventar-se. Vou chamar de amarração e gambiarra. Entre gambiarras e inúmeros “jeitinhos brasileiros” é que fomos/somos reinventados. Não é uma questão de escolha, mas de sobrevivência. É a partir das tecnologias de nossos ancestrais, de nossos mais velhos, nossos orixás, que nos reinventamos. “O nosso futuro é ancestral”, como bem diz Katiúscia Ribeiro. “Exú matou um pássaro ontem com uma pedra que arremessou hoje”. É sobre isso.

Quando a branquitude acha que se reinventar é uma proposta nova, única, nós já nos reinventamos há séculos! Parafraseando Marcus Garvey: como acham que esta raça poderosa está de pé hoje? Mesmo que nos queiram deitados em caixões ou ajoelhados, cabisbaixos, eles não entendem. Porque não é sobre entender ou explicar. É sentir, pulsar. São nossos ancestrais que permitem a nossa continuidade, que nos guiam neste propósito. É através deles que falamos, comemos, amamos, dançamos, suamos e reexistimos. Todo o nosso saber vem deles.

Ouvir da branquitude “reinvente-se” é de uma violência brutal. Longe de ser só uma “violência simbólica”, pois o apagamento epistêmico dos saberes preto e indígena também nos fere e mata. Tanto o nosso corpo físico quanto nossa psique. Tal frase tem o mesmo efeito do “e daí?”

Desde que fomos sequestrados de nossa casa, do colo de nossa Mama Áfrika, é isto o que temos feito: renascemos, reexistimos, resistimos, sobrevivemos. Um ancestral não morre.

Com que cara nos dizem “reinvente-se”? O que vocês criam não é novo. É colonial.

Como vivem, onde vivem (Casa-Grande), o que comem e como comem é colonial. A perspectiva do “olhar para trás” das pessoas brancas é a de permanecer no passado. Eles têm um apego com o que é atrasado. É o eterno retorno à forma de domínio do que é nosso. Fruto de nosso trabalho que foi roubado, expropriado. Começando por nossos corpos, nossa espiritualidade e nossa Filosofia. Já a nossa ancestralidade é afrofuturista. Criamos ontem para ser atualizado amanhã.

Toda palavra aqui escrita também não é novidade. Eu estou repetindo. Sim, repetindo. Porém, é uma escrita que bebe daqueles que me sopram aos ouvidos, bem como de inúmeros escritos pretos comprometidos com a nossa herança ancestral.

Eu sinto no meu coração. É a partir dessa memória que perpetuamos nossa ancestralidade, de forma oral ou escrita. E ela teima em coexistir. Mesmo quando o projeto é o de nos matar, nós dizemos que somos um povo que pratica a coexistência. Não é sobre dominar o outro que nos domina. Quem se acha o suprassumo da vida e da humanidade é o branco. E se, na história de nossas lutas, revidamos, é por saber que somos capazes de nos defender. Não somos vítimas dessa história colonial. Somos potência criativa e de imensa resistência. Sem isso, não estaríamos aqui.

 

Lorrayne Santos da Silva
Mulherista africana em diáspora. Mestranda da primeira turma de Ações afirmativas, do Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS-UFC). Pesquisadora das questões raciais no Brasil. Especificamente sobre o Emprego doméstico e sua relação com o racismo contra mulheres pretas

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