Em silêncio, Brasil chora 600 mil sonhos despedaçados pela Covid

País atinge marca trágica nesta sexta (8), pouco mais de um ano e meio após a primeira morte pela doença. Prestes a apresentar relatório final, CPI da Covid promete denunciar Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional

Pouco mais de um ano e meio desde o primeiro registro de morte por Covid-19, o Brasil chegou à trágica marca de 600.077 vidas perdidas na tarde desta sexta-feira (8), segundo o consórcio de veículos de imprensa. De lá para cá, o país embarcou em um virulento furacão de hospitalizações e mortes, culminando em até 3 mil óbitos diários no primeiro semestre deste ano. Apesar de uma expressiva queda de casos e óbitos pela doença, a média diária continua alta, com 438 registros diários de vítimas.

A banalização da tragédia acabou mergulhando o Brasil em um estado de inércia diante do horror de uma pandemia que poderia ter sido contida caso a maior autoridade do país tivesse como prioridade salvar vidas ao invés de se especializar “em matar”. Dezoito meses depois do início da catástrofe, as digitais de Jair Bolsonaro estão espalhadas pelos quatro cantos do Brasil e não deixam mais dúvidas sobre suas responsabilidades, apontam especialistas.

“Quando eu percebi que o governo federal não tinha nenhum interesse em criar uma mensagem, uma política de comunicação para esclarecer a população sobre a gravidade do que estava por chegar ao Brasil, eu já me dei conta de que a situação seria extrema”, aponta o neurocientista Miguel Nicolelis, em entrevista à CartaCapital. Desde o início da pandemia, o cientista atuou como um dos maiores defensores da adoção de um ‘lockdown’ no país para salvar vidas.

Nicolelis condenou a falta de coordenação nacional e o desmonte da área de saúde promovido por Bolsonaro. “Temos pessoas de alta competência e renome internacional na área, que poderiam ter ajudado o Brasil a estabelecer uma estratégia coordenada, multidimensional, tanto para os estados quanto para os municípios, tirando vantagem da existência do SUS. Na falta disso, ficou evidente, já em março do ano passado, que teríamos a maior tragédia humanitária do país”, lembrou Nicolelis.

Além de se omitir em alertar a população para a gravidade da crise sanitária, a partir de fevereiro de 2020, Bolsonaro trabalhou incansavelmente ao lado do vírus, sabotando medidas de proteção como o distanciamento social e o uso de máscaras. O argumento foi baseado no falso dilema de que era preciso salvar a economia.

Além disso, “todo mundo” acabaria pegando o vírus de um jeito ou de outro, justificava o ocupante do Planalto. Sem nenhum respaldo científico, o extremista de direita deu início a uma cruzada pela chamada imunidade de rebanho, que seria, em tese, adquirida com a contaminação pelo vírus, não com vacinação. Aquela “gripezinha”, como Bolsonaro a classificou ainda no início do surto.

Vacinas

Bolsonaro também engajou-se em uma inacreditável campanha antivacina, agitando seu exército subterrâneo de fake news para espalhar mentiras e boatos sobre supostos efeitos colaterais para gerar dúvidas na população quanto à segurança dos imunizantes. Com isso, foi levando para o terreno da disputa política um assunto de saúde pública. Para piorar, ele atrasou a compra das vacinas, demonizando a CoronaVac para atingir o rival João Dória, governador de São Paulo, e ignorou mais de uma centena de ofertas da Pfizer.

E mais: privilegiou imunizantes como a indiana Covaxin, mesmo sem aprovação da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa). Conforme revelou a CPI da Covid, instalada em abril para investigar as omissões de Bolsonaro na pandemia, o governo passou a dar preferência para compras de vacinas de empresas intermediárias. Procurando por atos de negligência federal, a comissão acabou descobrindo um esquema de corrupção no coração do governo Bolsonaro, o Ministério da Saúde.

Cloroquina

Para respaldar a estratégia negacionista e expor o maior número de brasileiros à doença e à morte, Bolsonaro propagou ainda a ideia de que haveria um tratamento milagroso capaz de evitar a doença ou, no caso de uma infecção, de curá-la: o kit covid, um conjunto de drogas comprovadamente ineficazes contra a Covid-19, como a cloroquina e a hidroxicloroquina. Um incentivo perfeito para dar às pessoas a coragem de sair de casa e se expor a uma contaminação.

O que parecia apenas uma tese amalucada de um negacionista revelou-se também uma excelente oportunidade de negócios, como descobriu a CPI da Covid. À medida que avançaram as investigações, a comissão desvendou ainda a participação de um gabinete paralelo que usou, em Manaus, no mês de janeiro, o chamado tratamento precoce para fazer experimentos com a população da capital amazonense. Enquanto isso dezenas de pacientes em estado grave morreram por falta de oxigênio nos hospitais.

Uma das bases de sustentação do gabinete foi a Prevent Senior, operadora de saúde que não só promoveu experimentos com as drogas sem o consentimento dos usuários, como aplicou tratamento paliativo em pacientes que ainda lutavam pela vida.

Crimes contra a humanidade

Há pouco mais de três meses, quando o Brasil ultrapassava a marca de meio milhão de vidas perdidas, o epidemiologista Pedro Hallal declarou à CPI que o país poderia ter poupado 400 mil brasileiros da tragédia se o governo tivesse agido quando foi alertado pela comunidade científica, ainda em janeiro de 2020.

Só o atraso na compra das vacinas gerou quase 100 mil mortes. “Nós fizemos uma análise que estimou que especificamente o atraso na compra das vacinas da Pfizer e da CoronaVac resultou em 95,5 mil mortes”, declarou Hallal, à época.

Agora, o país chora em silêncio a extinção de 600 mil compatriotas, enquanto a CPI da Covid se aproxima da conclusão e da apresentação do relatório final. O documento é aguardado com ansiedade por aqueles que esperam justiça. À sociedade, a comissão já avisou que culpados serão punidos.

No mês passado, integrantes do chamado grupo do G7 na comissão anunciaram que pretendem denunciar Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda, por crime contra a humanidade. A denúncia será sustentada, entre outros pontos, nas omissões que resultaram na crise de oxigênio em Manaus e na falta de políticas de proteção para os povos indígenas.

Uma eventual condenação de alguém que é chamado de genocida repetidamente não trará nenhuma das vítimas de volta. Mas poderá conferir conforto e alguma paz para tantas famílias com milhões de sonhos despedaçados.

Da Redação, com informações de CartaCapital

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