Letras Por Elas | As boas mulheres da China não deixam a gente dormir

Esse livro arranca lágrimas na madrugada e revira nossos úteros. Histórias reais do lado perverso da Revolução Cultural chinesa sobre as mulheres

Livro "As boas mulheres da China", de Xinran

Ana Clara, Agência Todas

 

Em 1989, a jornalista Xinran foi convidada pelo governo a apresentar um programa noturno de rádio chamado Palavras da Brisa Noturna. O que era para ser mais um espaço de entretenimento a ser preenchido no dial do cotidiano chinês tornou-se uma pequena fissura no grande dique das dores e dos sofrimentos das mulheres chinesas. Tudo começou com o recebimento de uma carta aflita de uma ouvinte:

 

“Respeitada Xinran, 

Adoro seu programa […] estou escrevendo para lhe contar um segredo. 

Não é bem um segredo, porque todo mundo na aldeia sabe. Há um homem velho e aleijado aqui, de sessenta anos, que comprou uma esposa recentemente. Ela parece muito nova. Acho que foi raptada. Acontece muito disso por aqui, mas muitas das garotas conseguem fugir mais tarde. O velho está com medo de que a mulher fuja, por isso amarrou-a com uma grossa corrente de ferro. A cintura dela está em carne viva por causa do peso da corrente — o sangue escoa pela roupa. Acho que ela vai morrer. Salve-a, por favor. 

Não mencione esta carta no rádio de modo algum. Se os moradores da aldeia descobrirem, expulsam a minha família daqui. 

Que seu programa fique cada vez melhor”

 

Daí por diante, a autora não parou de receber cartas e ligações de ouvintes de todos os tipos, desde dúvidas mais prosaicas sobre sexualidade até denúncias graves da situação da mulher em todo país. A jornalista, então, inicia uma saga de investigar e contar os relatos pesados, contundentes e intensos dessas chinesas que trazem à tona décadas de subjugação e humilhação da condição feminina na China.

O livro se estrutura por meio de várias histórias contadas pelas ouvintes e, grande parte, investigadas pela jornalista. Para quem está com dificuldades de se prender a uma longa leitura, o livro é pequeno e recheado dessas pequenas “esquetes”, de modo que é possível ler de forma picada e alternada. 

Até porque, acreditem em mim, vocês vão precisar e vão desejar ter muito fôlego entre uma história e outra. As camadas de crueldade e de desidratação da condição de ser humano da mulher atingem níveis em que é absolutamente inacreditável, mesmo considerando ter escrito trinta anos atrás. A pequena fissura dá espaço para o serpentear das lágrimas incontidas dessas mulheres que derramam suas dores sobre nossos olhos, nossos corpos, nossas mentes

Quando você lê a primeira história, você pensa: “esse foi o caso mais horrível que já conheci”. E daí por diante, os relatos pioram e pioram e tomam uma proporção de forma que não é mais possível estabelecer comparativos. O grau seriado das narrativas e das camadas internas e externas de humilhações e violações impostas às mulheres não permite mais comparações, apenas a constatação absoluta da constante necessidade de nos mantermos vivas. 

Mulheres que ficam presas entre escombros de terremotos durante três dias e sua morte lenta e dolorosa é acompanhada e assistida por outras chinesas, enquanto ela canta sua música derradeira que ecoa pela cidade. Uma chinesa que conhece o afeto apenas pelas patas de uma mosca; uma catadora que se submete ao ostracismo para não humilhar o filho, um político influente. Relatos inesperados, inverossímeis de tão reais, que despertam nosso instinto mais primário de sobrevivência e, de uma forma bem estranha, nos fazem criar uma conexão profunda com elas.

Sob outra perspectiva, o livro “As boas mulheres da China” também coloca na mesa a potência da força do jornalismo, quando é voltado para o interesse público em sua condição mais primária de humanidade. Para quem é jornalista, assim como eu, pode se deparar com as profundas razões pelas quais escolheu a profissão, tão vilipendiada nas últimas décadas. E, de quebra, coloca na mesa de discussão as limitações e a perversidade por trás da Revolução Cultural chinesa.

A obra resgata o poder da história das mulheres, dessa vontade inequívoca e teimosa de viver, e da nossa capacidade em mexer na estrutura do status quo. A jornalista Xinram chegou a ser agredida e perseguida quando se mudou para Londres no intuito de publicar seu livro com esses relatos. Assim como nós, Xinram carregou a voz dessas mulheres na tinta de suas páginas e toda vez que alguém abre, lê e segue adiante na certeza do feminismo, elas vencem.

 

Livro: As Boas Mulheres da China

Autora: Xinran

Editora: Companhia de Bolso

Ano: 2002

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