Letras Por Elas | Conheça a nova coluna semanal sobre literatura

Para quem pode e não pode ficar de quarentena, a literatura pode ser um bom caminho para reencontrar a humanidade e enfrentar tempos tão bicudos

Ana Clara, Agência Todas 

Eu queria abrir essa coluna sobre literatura dizendo que terminei o livro “Irmãos, Uma História do PCC” e minhas impressões, tensões e desassossegos; que li “Voragem”, literatura japonesa sobre relacionamento lésbico e é um troço assim surreal; que toda vez que eu encontro alguém que leu “A Elite do Atraso”, do Jessé, eu quero sair pra tomar cerveja, abraçar e conversar porque nunca sei se estou diante de um trade-off do pensamento da formação brasileira ou é um grande crítico, porém nunca vai abalar os cânones, MAS já abalou minhas estruturas quando chamou todo mundo que eu “conheço” de intelectual de prédio mal-intencionado, de forma muito bem fundamentada.

Ou poderia abrir na esteira do pânico dizendo que tenho estratégias literárias para passar o período de quarentena, estratégia privilegiada de quem pode escolher ficar em casa, e fazer a coluna virar mais uma metodologia de quem não está na base da estrutura de classe. Mas definitivamente não é isso, porque, no fundo, estamos tentando (re)encontrar os caminhos da humanidade, seja cantando na janela, aplaudindo trabalhadores da saúde,  tomando as medidas que são possíveis dentro da nossa realidade — e por que não: recorrendo à literatura. 

Então é assim, pessoal, a gente vai acumulando tensões que se somam a essa grande tensão do projeto de país, da decadência da civilização e do futuro que eu quero para as nossas crianças, com ou sem máscara, enchendo a mão de álcool gel. Esses tempos de dizer o óbvio e ficar meio assim passada com o tanto de fascista que surgiu entre os amigos e a própria família, capazes de te entregar para a tortura só pra ter razão, acabar com o bolsa-família e ~não passar na mesma calçada~ que as gays — e continuar sem razão. 

Estou decepcionada, e não é com a política, pasmem, é com esse pensamento tacanho e mesquinho de quem diz ~não gostar de política~, mas sai esbravejando contra gay, pobre, trabalhador, feminista, imigrante, nordestino — e até com quem toma vacina e diz que a Terra é redonda. Minha vontade arrastada e quase piedosa é de dizer: ‘oi, vcs sempre estiveram aí?’, ‘vcs sempre foram assim?’.

E é para isso que eu quero usar a literatura: para colocar óleo no trilho desse trem pesado de carregar. Aí quem sabe, ele não embala de uma vez, a gente sobe no vagão acelerado a milhão gritando ‘sai da frente que aqui tem gente’’ e atropela essa realidade sufocante de todos os dias?

Tem um artigo do Antonio Candido, do final dos anos 80, em que ele busca relacionar literatura e Direitos Humanos, mas, brilhante que é, faz muitos outros favores à humanidade. Ele já avisa que ~não é que a sociedade mudou~, mas agora as pessoas tinham mais pudor em dizer certas coisas. Não é que o preconceito acabou, mas ‘não dizer’ já era um avanço. Não externar o preconceito racial, social, étnico, de classe e esse ‘desvio de conduta’ ser ~um problema~ já era um aprendizado para a nova geração. Ele tinha um raciocínio. E uma esperança. Mal sabia ele. Trinta anos depois, estão todos aqui vociferando em redes sociais articuladas um atraso de séculos, uma verve de jabuticaba.

Não por acaso, ele relaciona com a literatura. Não essa encastelada na academia, mas aquela que faz a gente ser capaz de sonhar, fabular, encantar. 

É aquele pensamento dentro do busão lotado, na fresta da janela, enquanto correm os postes, a enchente, o guarda-chuva quebrado no ponto de que um dia as coisas podem melhorar. O refrão popular lembrado repentinamente entre uma baldeação e outra. É a nossa capacidade de fantasiar, isso tudo é literatura. 

É o tal não se pode comprar o vento, o sol, o vento, a lua. Não podem comprar nossa capacidade de sonhar, fantasiar e o que é a política se não fazer isso em larga escala. 

No plural. 

No coletivo.

Quantas vezes você não olhou para o lado e alguém, assim como você, abarrotado na rotina diária, estava imerso e absorto em seus próprios pensamentos fabulando formas de sobreviver e ter um mundo, ainda que seja pra si, melhor?

Política é quando as fabulações se encontram, é o papo reto sobre como o motorista podia ser mais suave e deixar as mina descer no ponto mais perto de casa, à noite, na rua. Esperar, ainda que o povo esbraveje, a senhora idosa com dificuldade subir mais lentamente e ter o mesmo direito que todos ali de ir e vir. 

É dessa forma que escrevemos a grande literatura de nossas vidas e de nosso país todos os dias. Antonio Candido, malandramente e sabido que foi, deixou essa letra pra gente.

Ele sabia que o caminho ia ser árduo, mas registrou essa inflexão democrática na história com a contribuição da literatura.

Talvez seja por isso que eu corra para ela — a mais clássica, no caso — e absorva outras tensões enquanto está impossível debater sobre qualquer assunto, porque no fundo talvez sejam as mesmas angústias. 

Viver é fabular.

Não vão tirá-la de mim. Não vão tirá-la de nós.

Sigamos.

 

Livro: Vários Escritos
Autor: Antonio Candido
Editora: Ouro Sobre Azul
Ano: 2017

 

Livro: Irmãos, Uma História do PCC
Autor: Gabriel Feltran
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2018

 

Livro: Voragem
Autora: Junichiro Tanizaki
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2001

 

Livro: A Elite do Atraso
Autor: Jessé Souza
Editora: LeYa
Ano: 2017

 

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